Realizadora avense explora os arquivos familiares em busca de uma história de amor e desgosto com um toque de inebriante melancolia, cristalizando em película o modo de vida de uma região.
A memória é um instrumento muito peculiar. Quanto mais se acede a certos momentos, parece que os corrompemos com a intromissão. Já não são um momento, um facto ou um vislumbre. São mais qualquer coisa. Daí que preservar memórias, cristalinas e intactas, seja uma tarefa quase impossível. É a partir deste mote docemente trágico que Nicole Noia parte em busca de uma história de amor, perdida no tempo e nas entranhas da família.
A avó passa a vida a rever os inúmeros álbuns de fotografias da família e numa dessas ocasiões, Nicole, a realizadora, perguntou-lhe sobre uma figura ali presente: o tio Fernando. Reconhecia-lhe a figura, mas não a sua história. E a intriga adensou-se com a resposta da avó. Tinha falecido. “De quê”, questionou-lhe a jovem. “De desgosto”, retorquiu.
Uma resposta daquelas dá origem a mil e uma novas perguntas, tornando-se no ponto de partida de uma aventura pelos arquivos de família e por memórias que ficaram perdidas com o passar dos anos. Uma história de amor que ao contrário de um qualquer conto de fadas, não terminou num “viveram felizes para sempre”.
Em “Tenho Medo do Fim das Coisas”, curta-metragem que estreou no passado dia 20 no festival Porto Post Doc, Nicole Noia utiliza o romance entre Fernando e Mariazinha como uma espátula arqueológica com que vai escavando cada vez mais fundo na sua própria história familiar, atravessando as margens do rio Vizela entre São Tomé de Negrelos e Vila das Aves.
“A história não estava abafada por ninguém não me querer contar”, afiança a realizadora de Vila das Aves, em declarações ao Entre Margens no átrio do cinema Passos Manuel, no Porto. “Não. Era apenas uma memória tão dolorosa para tanta gente da minha família que acabava por não se falar”.
As inquirições a membros da família e pessoas próximas, bem como o acesso a um arquivo familiar de invejável dimensão, começaram a desenrolar um novelo narrativo onde surge agridoce poesia ao virar de cada esquina.
Uma história de amor que nasceu da convivência quotidiana entre o Fernando, dono da mercearia na esquina da Ponte do Espírito Santo, homem sorridente e carismático, e Mariazinha, doce lojista de um estabelecimento de eletrodomésticos, ambos nas sombras da gigante ‘Rio Vizela” na década de 70. História que ficou por resolver, escondida entre fotografias cortadas, cartas queimadas e memórias dolorosas.
Fernando falecera em 1982, depois de ter emigrado para a Alemanha. Mariazinha continuou a viver em Vila das Aves, onde acabou por falecer em 2022. E o “desgosto” supracitado advém precisamente desta separação.
Nicole Noia trata o material com precioso toque de melancolia, onde a tragédia é assumida desde o início, mas que se propõe sempre a ir mais longe. É um retrato de época, uma crónica de costumes de vidas que não costumam pintar as telas de cinema. Um puzzle de memórias difusas e desordenadas que foi preciso rearranjar, montar e colar.
É um filme sobre a importância de “guardar tudo”. Guardar as emoções e as memórias. Guardar as pessoas queridas. Guardar momentos bons e momentos maus. Guardar álbuns fotográficos e filmes caseiros. Porque no fim de tudo, todos precisamos de nos agarrar a algo.
Este “medo do fim das coisas” é, como a própria admite, referente ao seu próprio medo, não das personagens, sendo também por isso um exercício autorreflexivo.
“É por isso que reúno estas memórias de vários fins e a forma como tal impactou não só a mim, como a outras pessoas”, explica. “Eu cresci ali, no meio da minha avó, do meu avô, com o tio Domingos, a tia Zeza, a ouvi-los contar histórias todos os dias. É isso que tenho guardado e me levam a fazer filmes. Para que nada se perca”.
Em dois filmes, “Mulher da Minha Gente” e “Tenho Medo do Fim das Coisas”, Nicole Noia resgata e reclama, não apenas a herança familiar, como ilumina o passado com a sua lente carinhosa. Os seus filmes guardam tudo e neles encontramos vidas resplandecentes.
Um arquivo invejável
Para concretizar esta curta-metragem, Nicole recorreu ao extenso arquivo fotográfico da família, mas não se ficou por aí. Bateu a muitas portas, falou com os comerciantes da rua, muitos que ainda se lembravam do tio Fernando e foram pedras preciosas na construção do puzzle. Uma dessas pessoas foi Henrique Pinheiro Machado, médico e ex-autarca, que lhe cedeu um conjunto de fotografias e foi uma das memórias deste projeto. Isto claro, para além dos seus avós e tios.
No entanto, houve um tio em especial que teve um papel crucial. António Couto, esteve também emigrado na Alemanha nessa altura, onde começou a filmar por hobby. Um “vício” que trouxe de volta para Vila das Aves. Hoje possui um arquivo invejável de filmes em película que retratam Vila das Aves e São Tomé de Negrelos durante a década de 70 e início de 80. A magia do cinema faz com que sejamos transportados diretamente, qual máquina do tempo, para aqueles tempos.
“Enfim, somos uma família de nostálgicos”, remata Nicole Noia, em declarações ao Entre Margens.