[Crónica] Pela arquitetura vernacular: As Casas de Lavoura I

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Impressiona, verificar, pelo país fora, o abandono de propriedades agrícolas e o consequente desrespeito a que estão votados os elementos arquitetónicos que fizeram parte dessas antigas unidades de produção e consumo. As suas edificações e terrenos marcaram, indelevelmente, não só a paisagem como também a lógica estrutural de muitas das formas do nosso pensamento social e cultural. Nas políticas urbanísticas dos diferentes concelhos, nem sempre se olha para estes edifícios com uma perspetiva patrimonial, licenciando-se, em inúmeros casos, intervenções urbanísticas bastante dúbias. Aliás, como é de todos sabido, o Vale do Ave é uma amálgama paisagística que contém muitos desses exemplos.

A relação do Homem com a terra marca toda e qualquer sociedade. No caso das áreas mais a sul do Entre Douro e Minho, ao longo dos últimos dois milénios, essa ligação formou-se, sobretudo, através da construção regular de unidades habitacionais agro-familiares nos espaços que se encontravam disponíveis nos territórios das paróquias. Aqui foram designadas por “casa”, “casal”, “vila” ou “quinta”. Identificavam não só a propriedade agrícola como também as pessoas que aí habitavam e/ou trabalhavam. Se, após a implementação da industrialização, foram muitas as casas que se construíram fora das dimensões agrícola e florestal, antes desse processo fabril, as edificações tinham, essencialmente, essa matriz correlativa com as plantas, a terra e a água.

De forma resumida, podemos dizer que os territórios que constituíam as paróquias dividiam-se, sobretudo, em três: a) as agras, situadas nos vales, onde se localizavam os campos com as diversas culturas cerealíferas, as hortas, os pomares, as vinhas e os lameiros; b) os montes, onde se apanhavam: os matos, matéria necessária para a produção de estrumes que fertilizavam as agras; a lenha, essencial para a cozinha; os animais de caça; e as plantas silvestres; e onde todos colocavam o gado a pastar; c) e, por último, os soutos, onde se encontravam os castanheiros, cujo fruto, até à divulgação da batata no século XIX, foi um nutriente primário na alimentação das comunidades.

Sequeirô – Eirado da Casa do Ribeiro

Dentro de cada freguesia, ao longo do tempo, construíram-se casas de lavoura que, de modo privado, trabalhavam, fundamentalmente, as agras e, de modo comunitário, os montes e os soutos. Os três tipos de terrenos eram essenciais não só à sua sobrevivência como também à da paróquia em geral. Todas as casas, em comum, no mínimo, tinham que ter a capacidade de assegurar rendimentos para a subsistência do pároco. Para tal, a comunidade detinha uma casa de lavoura – o passal – e o mesmo vivia dos rendimentos da mesma. Vários indivíduos formavam a casa, as várias casas formavam o lugar (ou aldeia), e os diferentes lugares formavam a paróquia.

As casas, desde o período romano implantaram-se, maioritariamente, nos vales, junto às agras. Raras eram aquelas que, por aqui, não obedeciam a um programa arquitetónico que, tecnicamente, se designa por casa-pátio. Esta tipologia de construção, adotada diretamente da arquitetura romana, dispõe todas as divisões em redor de um pátio central fechado, conhecido aqui como “quinteiro” ou “eirado”. Cada uma destas casas continha: a) um edifício de habitação, com quartos, alcovas, sala e cuja divisão principal era a cozinha. Esta era marcada, simbolicamente, pela pedra do lar, onde uma fogueira ardia, quase sempre, dia e noite, para a confeção de alimentos; b) diversas cortes para os diferentes gados – de bico, muar, cavalar, ovino, caprino e suíno; c) a casa da eira (aqui vulgarmente conhecidas como “cobertos”), a eira e o espigueiro, onde se armazenavam e secavam os cereais e outras plantas; d) e os palheiros, onde se guardavam as palhas, as lenhas, o carro de bois, as ferramentas e as alfaias agrícolas.

Algumas mais abastadas ainda possuíam outros edifícios específicos dedicados à transformação ou à criação de animais, como são exemplos os moinhos, as azenhas, lagares de azeite, serrações de madeira, alambiques e pombais, entre outros.  

 Estes edifícios, ao longo do tempo, foram-se reconstruindo e melhorando, agregando uma série de indivíduos no seu interior, diferenciados, entre si, numa estrutura piramidal que, no topo, era liderada por um patriarca – o patrão – cujo nome ou profissão, em muitos casos, dava o nome à propriedade. À sua morte, asseguravam a liderança a viúva ou o filho mais velho. Além destes, a estrutura incluía escravos (até aos séculos XVIII e XIX), criados, caseiros, jornaleiros e, obviamente, os restantes membros da família nuclear proprietária e outros familiares, regra geral os solteiros e os anciãos. Regularmente, eram mais conhecidos pelo nome da casa a que pertenciam do que pelo próprio apelido familiar. Todos os homens e bichos asseguravam a força motriz do trabalho necessária à subsistência destes complexos agrícolas. Além disso, os animais domésticos garantiam ainda o leite, as peles, a formação de estrumes e grande parte da carne alimentar. Toda a lógica do trabalho destas unidades de produção visava assegurar, sobretudo, um autoconsumo fechado, que evitava toda e qualquer dependência alimentar externa.

Por outro lado, ao nível comunitário, a casa tinha obrigação de se fazer representar em inúmeros rituais religiosos, como a organização das festas ou os enterros, assim como nos trabalhos das terras comuns, os soutos e montes. Todas tinham a obrigação de contribuir com mão-de-obra para limpar presas e levadas de água, efetuar a manutenção dos caminhos e pontilhões e até fazer batidas a animais considerados daninhos, como o lobo, a raposa, o texugo ou o javali.

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