Num prelúdio de tempestade, um calor de fornalha ardente atabafava o ar carregado de poeiras, que coloriam o enevoado dia com um fantasmagórico “dourado pôr-do-sol”. Pouco antes da hora “H”, sem sequer um “água vai”, uma imensa bátega desaguou numa fúria histérica sobre este Vale do Ave. Num frenético desvario, os relâmpagos, não se fazendo rogados, desataram a disparar rajadas de raios, que incendiavam o céu num espalhafato de luz e brilhos. Sem tardança, os trovões fecharam o quadro desta dantesca procela com os seus dramáticos e estrondosos estouros do fim do mundo.
Vai-se lá saber porquê, esta feérica tempestade trouxe-me à memória a outra, a de março de 2020, tão mais discreta, mas tão mais devastadora. A que ceifou vidas e a vida tal como a conhecíamos, a tal pandemia que, num ápice, desbotou a Primavera e proscreveu beijos, abraços e cumprimentos como impiedosos carrascos. Recordo, como se fosse hoje, o dia daquele março triste em que tive de comunicar aos meus amigos que o lançamento do meu livro “Entre Margens” ficaria suspenso até que o pudéssemos festejar com quantos cumprimentos, abraços e beijos quiséssemos, como deve ser um verdadeiro encontro de amigos. Momentos depois, em carne viva, entre o susto e a esperança, desabafei de uma penada:
Ah, quando isto acabar… e vai acabar
Será Natal, Páscoa, 25 de Abril e S. João,
Será a festa de todas as festas que ficaram por festejar;
Será um festival de todos os abraços que ficaram por dar,
Será arco iris, sol, brisa, Primavera e Verão.
Ah, quando isto acabar… e vai acabar
Nenhum beijo ficará por dar,
Nenhum amor por partilhar,
Nenhum abraço por apertar,
Nenhuma carícia por trocar.
Ah, quando isto acabar… e vai acabar,
Nenhum mar ficará por mergulhar,
Nenhum rio por atravessar,
Nenhum sorriso ficará por acender,
Nenhuma flor por oferecer.
Ah, quando isto acabar… e vai acabar
Quem sabe se a fraternidade vingará,
Se a justiça campeará,
Se o mundo se unirá,
Se a humanidade, finalmente, ganhará.
Refrescados os ares e enxurradas as poeiras douradas, a tempestade que tão lampeira se tinha encrespado, também num ápice se amainou. Bem ao contrário, da outra, que só dois anos, dois meses e mais uns dias depois se apaziguou. Só vencidos estes tão negros, longos e doridos dias foi possível, finalmente, ir ressuscitando aos poucos a velha vida.
Por causa dela, só dois anos, dois meses e vinte e tal dias depois, foi possível consumar o lançamento do “Entre Margens”. No dia 15 deste junho alegre, foi tão bom ver tantos amigos reunidos, sem máscaras nem distanciamentos e, ainda por cima, por causa de um livro, do meu livro. E, nem uma vida inteira a “botar discursos” quase todos os dias, me livrou de um nervoso miudinho quando chegou a hora de lhes dizer:
“Eu sei que não parece, melhor, eu até sei que parece exatamente o contrário e sei, também, que se o meu gestor de conta ouvisse isto, morria a rir. Mas, olhando esta sala, não tenho dúvidas que sou um homem de fortuna. À minha frente vejo toda a fortuna que me importa e toda a riqueza pela qual labutei toda a vida.
Vejo a minha mãe, o centro e o eixo da minha vida, e sei que o meu pai, não estando, também está por aí. Vejo a minha mulher que, corajosamente, há mais de 30 anos me carrega como calvário (ela jura que não, mas eu conheço-me). Vejo a minha filha mais nova e sei que a mais velha, não podendo estar, também está por aí. Vejo o meu irmão, amigo e parceiro. Vejo os meus cunhados, cunhadas e os meus sobrinhos e sobrinhas. Vejo amigos, muitos amigos do peito, daqueles que me esteiam a vida, daqueles que estão sempre lá quando deles mais preciso, mesmo quando só me podem valer com um abraço.
E, vejam lá, como se não bastasse, a família e amigos estão aqui todos por causa de um livro.
E, portanto, estão aqui os três maiores tesouros da minha vida: a família, os amigos e os livros. Por isso, hoje, sinto-me nesta sala como o trilionário do tio Patinhas a mergulhar de cabeça da prancha da sua imensa caixa-forte para o mar de dinheiro que nela guardava. Graças à Vossa presença, recordarei para sempre este dia, como um dia muito feliz.
Só por isto, o livrito já valeu a pena.”
Foi tão bom, finalmente, apertar todos os abraços e dar os beijos que ficaram por dar, à família e aos muitos amigos, que ali vieram de propósito para estarmos juntos. Foi ótimo falar com eles do livro e de livros, conversar, trocar ideias e saudades, ouvir música e poesia e partilhar um porto.
Mesmo sabendo, que “aquilo” ainda não acabou, e que, como se “aquilo” não bastasse, há quatro horrendos meses que se ouvem os estrépitos das máquinas de guerra a ensanguentar o chão da Ucrânia. Mesmo entrando pelos olhos dentro que, mais uma vez, ainda não é desta que a fraternidade vingará, que a justiça campeará e que o mundo se unirá, a verdade, é que no fim daquele belo encontro de amigos, não pude deixar de sentir que, naquele dia, no auditório do Centro Cultural Municipal de Vila das Aves, se fez um pouquinho de Natal, Páscoa, 25 de Abril e S. João. Apesar de tudo, a primavera voltou a florir e a vida já vai correndo, mais ou menos, como nos bons e maus velhos tempos e, mais do que nunca, temos de nos regalar com estes pequenos momentos felizes, que nos fecundam a coragem de manter a esperança, como escreveu Mia Couto. São estes preciosos momentos que nos realentam para continuarmos a teimar, a acreditar e a fazer o melhor que pudermos e soubermos para manter viva a sempiterna luta para que, um dia, a Humanidade acabe, de uma vez por todas, por ganhar.