O livro de Henry Lefebvre, “O direito à cidade”, publicado há 50 anos – e cujo slogan foi apropriado por vários movimentos sociais – congrega a visão de uma cidade onde o espaço público, o trabalho, a habitação, os transportes, o ambiente, a saúde, a educação, a cultura e o lazer se conjugam de forma harmoniosa para assegurar o bem-estar de todos. Para tal é imperativo assegurar, a princípio, o direito a habitar a cidade.
Nas últimas décadas, observa-se um desfasamento entre os preços praticados e os rendimentos da maioria da população. Em dez anos (2010 a 2020), o custo das habitações cresceu 46% enquanto o ganho médio de um trabalhador cresceu 10,4%. Mercê destas políticas, as famílias de mais baixos rendimentos veem-se obrigadas a uma taxa de esforço incomportável (acima de 40%) para garantir habitação, enquanto a percentagem de jovens adultos (18-34 anos) a viver em casa dos pais tem vindo a aumentar de forma sustentada, atingindo os 60%.
Santo Tirso não é imune a este retrocesso. Sendo os salários habitualmente mais baixos do que a média da Região Norte – na indústria, construção e serviços, o salário bruto mensal varia, em média, entre 800,00 e 950,00 euros – basta uma pesquisa rápida para encontrar anúncios de apartamentos de tipologia T0 e T1 com rendas mensais a rondar os 400,00 e 450,00 euros, o que equivale a cerca de metade do rendimento médio bruto mensal de um trabalhador.
“Cresceu a financeirização do imobiliário, que transformou a habitação num bem que serve para reproduzir capital e gerar lucro, e não para satisfazer uma necessidade humana básica”
João Ferreira
Ora, o direito à habitação figura nas páginas da Constituição e delibera que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, incumbindo ao Estado assegurar o cumprimento desse direito. Acontece que, desde a década de 1980, sucessivos governos procuram retirar do Estado a responsabilidade que constitucionalmente lhe incumbe, como comprova a extinção, em 1982, do Fundo de Fomento de Habitação – principal instrumento de intervenção na promoção e gestão de habitação pública. Por sua vez, a opção política recaiu em apoios destinados à aquisição de casa própria, tendo nos últimos anos prevalecido a lógica da liberalização do mercado de habitação através da infame “Lei Cristas”, da promoção do alojamento local e da aquisição de habitação de luxo através da emissão de Vistos Gold, sem qualquer preocupação social. As consequências são conhecidas. Cresceu a financeirização do imobiliário, que transformou a habitação num bem que serve para reproduzir capital e gerar lucro, e não para satisfazer uma necessidade humana básica. Cresceram exponencialmente os despejos de habitações, as sobreocupações e as situações de habitação indigna. Ganhou enorme dimensão a expulsão de famílias de classes trabalhadores, de baixos e médios rendimentos, para as periferias num processo de gentrificação urbana.
Não obstante as políticas municipais possam contribuir para criar condições de acesso à habitação, o certo é que as principais responsabilidades neste domínio cabem ao Estado central. Com efeito, de modo a caminhar para cidades com políticas de habitação a custos acessíveis, que atraiam população residente, jovens e menos jovens, será necessário revogar a lei dos despejos e assegurar contratos de arrendamento estáveis. Será necessário mobilizar o património habitacional público e incentivar à mobilização o património privado devoluto para programas de arrendamento, visto que há 700 mil fogos devolutos, o que corresponde a 15% de todo o stock habitacional que existe no país. Será necessário valorizar as organizações de moradores, as cooperativas e os processos de autoconstrução e autoacabamento. Só assim podemos abrir caminho à consagração do direito constitucional à habitação.