[Crónica] As burcas do cinismo e da contradição

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Subitamente um país inteiro passou a debater as burcas. O Chega apresentou um projeto-lei em vista da proibição da utilização de burcas no espaço público, vendo-o aprovado com o consenso de toda a direita (surpreendentemente, ou nem por isso).
À primeira vista, a proibição parece atentar contra a liberdade religiosa. Num país laico, como Portugal, não é defensável, em geral, permitir determinados cultos, onde se inclui a livre utilização dos símbolos e objetos associados, em detrimento de outros. Assim, usar um crucifixo cristão deveria ser tão permissível como uma burca.
Pode objetar-se, no entanto, que cada direito tem como limite todos os outros, e se a liberdade religiosa é fundamental, a burca, ao contrário de um crucifixo, comporta riscos para a segurança pública, associados ao facto de ocultar a face, dificultando o apuramento da identidade de quem os utiliza. Por outras palavras, a burca é passível de ser instrumentalizada como disfarce para a perpetração de determinados crimes.
Embora o argumento deva ser considerado e debatido, no atual contexto assenta em bases pouco sólidas. Em primeiro lugar, o número de burcas, em Portugal, é relativamente marginal. Em segundo, se a segurança fosse a grande preocupação, não haveria nenhum motivo para que a lei se debruce apenas sobre as burcas, e não sobre toda e qualquer indumentária que tenha o mesmo efeito, ou semelhante, de ocultação de identidade. No Carnaval posso continuar a colocar a minha máscara do Dali, igual às que as personagens da Casa de Papel usam para assaltar o Banco Central espanhol? Temos de fazer alguma coisa em relação à roupa das freiras? Devemos punir os membros do grupo 1143 que oculta a cara durante as suas manifestações?
Em abono da verdade, este também não é o argumento que a direita mais invoca.
As declarações dos líderes de Chega, AD, e IL vão noutro sentido, o da proteção das mulheres. Embora o uso compulsório tanto das burcas como de outro tipo qualquer de vestimenta seja proibido por lei, a direita desconfia da real voluntariedade, por parte das mulheres que usam burcas. Paira no ar a desconfiança de que estas são forçadas pelos seus maridos a fazê-lo. Em suma, trata-se de um argumento consequencialista.
Por um lado, há uma certa ironia em este problema ter sido levantado por estes protagonistas, que na maioria das vezes militam em contraciclo com as tentativas de expansão dos direitos das mulheres. O Chega é um partido misógino. O PSD ainda há pouco tempo queria “punir” as mães que amamentam em contexto laboral. A AD, aliás, como se vê na proposta de reforma laboral, partilha com a IL uma conceção de liberdade, em matéria económica, avessa à que recorre agora, relativamente, às mulheres que vestem burca.
Por outras palavras, para estes partidos, constituindo para a IL o Alfa e o Ómega da sua ideologia, um trabalhador tem exatamente a mesma liberdade contratual que um patrão (Mariana Leitão defende “liberdade total” nas relações de trabalho, contra as supostas proteções ao trabalho conferidas pelo Estado). As relações laborais são puramente voluntárias de parte, de parte. Negligenciam que, apesar da liberdade formal prevista na lei, há assimetrias de poder inexoráveis, e que por vezes os trabalhadores trabalham sob determinadas condições deploráveis não por pura voluntariedade, mas por se verem forçados a tal, por falta de alternativas decentes, para lá da mera destituição material.
Surpreendentemente, quando se trata das burcas despertaram para a insuficiência da liberdade meramente formal. Bem-vindos!
Mas se o argumento é esse, importa equacionar se a proibição das burcas em vez de emancipar as mulheres as enclausurará, ainda mais, nas suas casas. É que um argumento consequencialita vale pelas suas consequências. Por isso convém avaliar o seu alcance. Não o fizeram, e também não era esse o objetivo do Chega. Morderam o isco.

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