[Crónica] O sindicato das almas como válvula de escape da burguesia

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

O novo documentário de Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos, explora, de forma brilhante, as relações entre o crescimento da Teologia da Prosperidade Evangélica e a política brasileira, nomeadamente no que concerne à Direita Política.
Embora o fenómeno religioso em questão esteja comumente associado à extrema-direita, este terá sido inaugurado por Ronald Reagan, nos EUA, numa comunhão entre os televangelistas em voga e a sua agenda neoliberal.
A lógica da associação torna-se óbvia após poucas palavras proferidas por um televangelista famoso na época de Reagan. Parafraseando-o, Marx estaria equivocado ao explicar os problemas sociais com base nas classes sociais. Estes, ao invés, explicar-se-iam, pelo carácter pecaminoso dos indivíduos.
Ou seja, no lugar das divisões de classes entre capital e trabalho, ricos e pobres, a realidade deveria ser perspetividade através da divisão entre pecadores e virtuosos.
Esta divisão vai perfeitamente ao encontro da justificação neoliberal segundo a qual é o “mérito” que determina a posição social que cada um ocupa, pelo que as desigualdades sociais seriam justas.
A tese da meritocracia pode, contudo, revelar-se por vezes parca para explicar todos os infortúnios. Como atribuir falta de mérito à miséria de alguém que se mata a trabalhar? Como explicar a lotaria social, as sortes, e os azares? Como se justifica que um administrador de uma empresa possa ganhar 100 vezes mais do que um trabalhador médio, sem que nada indique que este último seja 100 vezes mais produtivo do que o primeiro?
Assim, as assimetrias de poder entre classes parecem dar uma resposta mais convincente para estes problemas do que o mérito. As classes mais abastadas, e os políticos que as representam, precisam então de um suplemento que resgate o argumentário meritocrático das suas falhas de racionalidade evidente, e consigam que a sociedade aceite, em paz social, tamanhas desigualdades.
E nada melhor do que isso do que a religião. A teologia da prosperidade procura convencer as pessoas que vivem mal de que isso se deve, não necessariamente a falta de mérito produtivo, mas ao facto de viverem em pecado. É desmérito divino. Por conseguinte, estas não deveriam procurar um virar de página num sindicato, ou num governo de esquerda, mas sim na congregação mais próxima. O culto – qual ópio do povo – estilhaça a força de trabalho, e afasta-a da luta de classes. Faz com que cada pessoa deixe de apontar o dedo à burguesia e passe a virar o dedo para si própria. A reivindicação coletiva passa a confissão e autossacrifício individual. Deus recompensará mais tarde ou mais cedo, o sacrifício com prosperidade.
As classes abastadas encontram, assim, nestes cultos, a alibi perfeito para poderem continuar a acumular fortunas sem contestação.
Este fenómeno não influenciou, pelo menos até agora, a política europeia na mesma dimensão que o fez por todo o continente americano. No entanto, é bom lembrar que na última crise, a austeridade aplicada aos países da Europa foi justificada, em grande medida, como castigo pelos supostos vícios morais dos países do sul da Europa. Na altura Luís Montenegro era líder parlamentar do partido do governo que se arrogava de ser o “melhor aluno” na aplicação dessa receita.
Hoje, enquanto PM, socorre-se da mesma para introduzir uma reforma laboral que ameaça de forma contundente o direito dos trabalhadores.
A mensagem é que a proteção social induz as almas pecaminosas dos trabalhadores à preguiça. Para a ministra do trabalho, Maria do Rosário Ramalho, até há mães que usam a amamentação dos filhos como pretexto para terem o horário reduzido.
Que pelo menos a absurdidade do exemplo sirva para desmascarar a agenda que procuram promover, e os grupos que dela beneficiam.
Sempre foi a luta de classes!

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