[Opinião] O outro sou eu

CRÓNICAS/OPINIÃO João Ferreira

Em Outubro de 1962, numa pequena região fronteiriça que separa a Espanha (País Basco) da França, os funcionários da alfândega inspecionavam um camião que se dirigia a Paris, tendo aí descoberto 65 portugueses escondidos e assustados. Desejavam trabalhar nas fábricas têxteis e na construção, juntando-se aos familiares estabelecidos nos enormes bairros de lata dos arredores de Paris, chamados de “bidonvilles”, onde viviam milhares de portugueses sem eletricidade, saneamento nem água potável. Este episódio multiplicou-se entre os finais dos anos 50 e o princípio dos 70, onde cerca de um milhão de portugueses emigrou para França. Muitos partiram de forma clandestina, trabalhando “sem papéis”, condição que os tornou vítimas de discriminações de todos os tipos.

Em pleno séc. XXI, por toda a Europa, milhões de imigrantes vivem em semelhante limbo, esquecidos por uma política de dissuasão deliberada, embora não reconhecida. Conforme observamos em Portugal, além de afastados do seu meio social, desconhecendo a língua, e por consequência os seus próprios direitos, ainda lidam com anos de atrasos na regularização das suas condições de permanência. Só no que diz respeito a processos pendentes de pedidos de residência, serão à volta de 400 mil. Ora, muitos desses imigrantes auferem o salário mínimo nacional (ou abaixo desse valor), sendo trabalhadores não qualificados nos setores mais precários e mal pagos, tais como a construção civil, a agricultura, a hotelaria e restauração. A fragilidade da sua condição contribui para o crescimento da precariedade, das cargas horárias desumanas e dos baixos salários (quando são pagos), sendo obrigados a viverem, na maioria dos casos, em alojamentos sobrelotados. Ao mesmo tempo, são vítimas de exploração das chamadas máfias das senhas ou das redes de trafico de seres humanos, submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão. Acresce ainda o crescimento do discurso xenófobo e racista, onde são apontados como responsáveis pela degradação económica e social, pela criminalidade, de que eles próprios são vítimas.

A estratégia das forças que promovem esse discurso passa por opor os trabalhadores portugueses aos trabalhadores estrangeiros, para melhor explorarem uns e outros. Aliás, não são os estrangeiros que os afligem, pois defenderam afincadamente a entrega dos nossos setores estratégicos ao capital estrangeiro: a eletricidade e os serviços energéticos (EDP e REN) à chinesa Three Gorges; a maior empresa de telecomunicações aos franceses da Altice; a gestão dos aeroportos (ANA) aos franceses da VINCI, a EFACEC ao fundo alemão da Mutares, e mais de metade da banca nacional. Às forças de direita interessa usar os imigrantes como instrumento de desvalorização salarial de todos os trabalhadores do nosso país. Para tal, recorrem ao racismo e à xenofobia para dificultar a sua integração, mantendo-os na clandestinidade para que continuem a ser sobrexplorados. Ou promovem a concorrência entre trabalhadores imigrantes (precários) e trabalhadores portugueses (direitos reconhecidos) de modo a provocar um regime de equivalência penalizador para estes, e não o seu contrário.

Os imigrantes não são a ameaça. O inimigo comum são as forças de direita que utilizam os imigrantes, o racismo e a xenofobia como arma de divisão dos trabalhadores de forma a potencializar a sua exploração. Todos os que aqui vivem e trabalham, nascidos em Portugal ou não, devem ter os mesmos direitos, de um salário decente a um vínculo laboral estável, exigindo-se a sua regularização urgente. Exatamente o que deveria ter sido assegurado aos emigrantes portugueses de “bidonville”, pois já recordava Brecht, também “nós somos estrangeiros em quase todos os lugares do mundo”.

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