Ricardo Gomes e Patrícia Castro ganharam o bichinho pelas viagens pelo mundo fora em modo roadtrip e, acabados de regressar da Jordânia, preparam já o seu maior desafio: quatro meses de mochila às costas pelo sudeste asiático.
Numa parede do corredor lá de casa há um mapa mundo marcado por pioneses, fio colorido e postais em toda a volta. Na sala, o quadro de um lama em cores garridas é vizinho de uma coleção de caricas das cervejas típicas e ao fundo, a sinalização pendurada, indica as distâncias em quilómetros para algumas das cidades por onde Ricardo Gomes e Patrícia Castro já passaram.
Quando em 2016 embarcaram num avião com destino à Irlanda, estariam certamente longe de imaginar que aqueles cinco dias iriam mudar totalmente a forma como olham para as suas vidas: o embrião do bichinho pelas viagens que apenas cresce desde então.
Foi uma descoberta nos vários sentidos da palavra. A Irlanda é, por excelência, um cenário cristalizado no imaginário de viajantes pelo mundo inteiro, mas mais do isso foi captar uma essência de liberdade e autonomia pessoal.
A residir atualmente em Riba de Ave, Ricardo e Patrícia não tiveram uma infância onde as viagens fizessem parte do léxico. Ele, com a juventude nos escuteiros, tem lá dentro o ADN de aventura. Já ela, não. “Não era algo que fazia com os meus pais. Nunca viajámos assim para longe, sempre fizemos férias como um típico português”, sublinha.
Sete anos após esse click, o casal já passou por mais de uma dezena de países, cruzando o continente europeu, médio oriente, sudeste asiático, américa do sul e central.
Um vício insidioso
Apesar de a Irlanda ter sido o ponto de partida, na verdade foi a Escócia que criou o template para o tipo de viagens em que se gostam de aventurar. Sem agências ou resorts de luxo, e tours apenas em casos muito específicos: para eles, a essência das viagens está nas roadtrips.
“Numa palavra é liberdade”, sublinha Ricardo Gomes, 31 anos, natural de Roriz. “A liberdade que tens numa roadtrip é inigualável”.
Foi assim que se aventuraram na sua lua de mel. O México é um popular destino para recém-casados, mas para eles o resort serviu somente para duas noites. As restantes três semanas foram passadas com um carro alugado a conhecer o país por dentro.
“Pegas no carro, traças no mapa onde queres ir e qualquer momento algo te chama a atenção, fazes um desvio e acabas por descobrir coisas incríveis. É stressante, mas a sensação de liberdade é enorme”, explicou ao Entre Margens.
Depois de experimentar aquela sensação é quase impossível parar. Que o diga Patrícia Castro, 31 anos, natural de Vila das Aves, que se autodescreve como uma “rapariga tímida e introvertida” e que desde então tem outra postura no seu quotidiano. É, aliás, da sua responsabilidade toda a preparação, pesquisa e logística das viagens que fazem.
“Preparo sempre um briefing”, diz. “Começo por fazer uma pesquisa geral em alguns blogs que sigo. Faço um resumo de todas as questões básicas sobre o país. Línguas, moeda, necessidade de visto de entrada, cuidados a ter, scams habituais para aliciar turistas. Quanto ao roteiro, coloco pontos de interesse ou experiência que não podemos falhar, comida típica porque somos pessoas que gostam muito de comer e os preços que podemos esperar para não fugirmos ao orçamento previsto”.
Aquilo que parece ser um roteiro muito compreensivo é, na verdade, apenas um guia ou uma carta de intenções. Porque a parte mais importante de uma roadtrip é a flexibilidade e a procura pelo inesperado. Não se trata apenas chegar ao destino, mas os desvios inesperados que se fazem pelo caminho.
Falar com as pessoas e ouvir as suas histórias
A experiência de resort é muitas vezes controlada ao milímetro e não tem espaço para a humanidade. Talvez essa seja a grande diferença para as roadtrips. Na tarde em que receberam o Entre Margens em sua, o casal tinha chegado no dia anterior da Jordânia, onde para além da visita à cidade perdida de Petra ou a experiência de pernoitar no deserto, o que mais os marcou foi a hospitalidade das pessoas.
“Às vezes fazemos comparações erradas. Não é por eu ter mais comodidades do que a maioria, que aquelas pessoas estão a passar mal”, aponta. “Eu é que sou o estranho e o intruso naquela situação. Isto ensina-nos a relativizar os dias maus que passamos cá em casa”.
Por vezes bastam parar trinta segundos. Observar o mundo a girar sobre o seu eixo e sentir o pulsar das pessoas a navegar o seu dia a dia numa rua do outro lado do mundo, imaginando-lhes as preocupações, os interesses e as paixões. “Cada sítio a que vais, vai ter algo que te vai transformar de alguma maneira”, remata Patrícia Castro.
É essa experiência que têm tido um pouco por todos os locais por onde têm passado. Na Islândia, por exemplo, talvez tenham subestimado os nevões.
“Alugamos uma camper van. Estávamos em março, os parques de campismo fechados, mas podíamos parar para passar a noite. Eu nunca tinha conduzido na neve e ao fazer uma manobra ficamos atolados numa valeta. Tentamos de tudo e não conseguimos sair. Ligamos para a assistência técnica que nos pediu 700 euros para tirar a carrinha. Decidimos passar a noite ali para tentar resolver o problema de manhã. Alguém chorou bravo nessa noite”, lembra Ricardo, com sorriso nos lábios. “No dia seguinte, encontramos um complexo de piscinas onde nos indicaram um miúdo que nos podia ajudar. Lá nos apareceu um rapaz de caterpillar para puxar a carrinha que estava ainda mais enterrada com o nevão da noite. O rapaz tirou a carrinha, perguntamos quanto era e ele deu um valor próximo dos 60 euros. Como só tínhamos cartão bancário, perguntamos se havia algum ATM por perto. Ele olhou para nós e desejou-nos boa viagem”.
Já no Peru, no início deste ano, uma viagem de autocarro entre Cusco e Arequipa foi interrompida por uma revolta popular na fronteira de um dos estados. O percurso que era suposto durar dez horas, depois do voo interno ter sido cancelado por falência da companhia aérea, ficou parado pelo corte de estradas por parte da população, acabando por durar um total de 22 horas.
“Os autocarros até são confortáveis, as estradas é que nem por isso”, recorda. “As vistas são fantásticas, mas quando vais numa estrada onde só cabe o autocarro e vês carros de frente, derrocadas, enfim. Não tínhamos comida para suportar a viagem toda, só uns amendoins que acabamos por partilhar com uma senhora grávida ao lado. Quando chegamos, a senhora veio ter connosco com um pão na mão para retribuir”.
São estas as experiências que exponenciam o espírito de viagem. Petra ou Machu Picchu podem ser locais inescapáveis, mas não são a única razão para se viajar milhares e milhares de quilómetros.
Orçamento, férias e licenças sem vencimento
E como é que um jovem casal, a trabalhar para uma multinacional do retalho, consegue, primeiro, ter tempo, e segundo, dinheiro para estas expedições? É tudo uma questão de equilíbrio, explicam.
“Temos 25 dias de férias por ano. Se conseguires jogar com um ou outro feriado, dá para esticar mais um bocado”, esclarecem. “Depois, a nossa empresa tem uma modalidade que te permite tirar dez dias ao longo do ano por razões pessoais. Uma espécie de licença sem vencimento e nós aproveitamos isso”.
Quanto ao orçamento, mais uma vez a palavra chave é equilíbrio. É que, admitem, fazer estas viagens é “caro”, mesmo sendo os próprios a tratar de tudo.
“Se fizéssemos por agência, cada viagem custava o triplo. E como nós não priorizamos a comodidade da estadia, permite-nos pensar de maneira diferente”, justifica Patrícia Castro.
Para o início do próximo ano está já marcada aquela que será a maior aventura que já se propuseram. Quatro meses no sudeste asiático de mochila às costas. O primeiro destino será o regresso a Bangkok, capital da Tailândia. Depois, o plano, por agora, prevê estadias no Camboja, Vietname, Sri Lanka, Filipinas, Laos e talvez Myanmar.
Tudo sempre a dois. “É algo que a fazermos tem que ser agora, porque temos a oportunidade de a empresa nos permitir tirar este tempo fora e porque mais tarde se começarmos a pensar em filhos, torna-se mais difícil. Não é que não dê para fazer na mesma, mas obriga a outra logística e responsabilidade”, admite Patrícia.
“Tem sido uma prova boa para a nossa relação”, acrescenta Ricardo. “Há discussões e desentendimentos, nem sempre corre tudo bem, mas temos de ter sempre a capacidade de acalmar e desenrascar”.
Ainda agora regressados do Médio Oriente, mal podem esperar para que chegue a janeiro e poderem voltar a à extasiante mistura de cheiros e caos constante do sudeste asiático. “Gostamos de contrastes. Do caos das cidades e da tranquilidade da natureza. Lá dá para conjugar as duas coisas”.