Os mass média ocidentais há anos que se deixam fascinar com a pantominice dos centros comerciais do Qatar, dos Emirados e da Arábia. Deslumbram-se com a indústria extrativa dos petrodólares e promovem o turismo inócuo às suas catedrais de consumo, à espampanância ridícula de avistar carros luxuosos de alta potência, dos relógios de luxo, das barras de ouro e das pochetes das marcas mais refinadas. Apesar de 99.9% dos cidadãos do mundo nunca poderem vir a aceder a este tipo de luxos, espoletar o fascínio pela riqueza no ímpeto do ser humano, resulta sempre. É um turismo de satisfação em ver o que não se pode ter. Mas é assim, pelo menos, desde o Neolítico, quando se desenvolveram os processos de várias culturas agrícolas e da pecuária e a Homem se sedentarizou. Nesse decurso, a humanidade criou protocolos e rituais em que um senhor passou a herdar a soberania de um Estado, um exército, inúmeros escravos e até um império. E isso fascina as gentes.
Desde a descoberta do petróleo na Arábia Saudita, em 1938, que a monarquia deste país se tem fortalecido, sustentada num regime ultraconservador, ultranacionalista e controlador que, ao longo dos tempos, não tem olhado a meios para atingir os seus fins. Agora, a casa real saudita usa, cada vez mais, uma nova ferramenta para dissimular as suas ações: o desporto. Numa operação de “sportswashing”, o regime, do rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, tenta limpar a face e disfarçar o despotismo e a violação dos Direitos Humanos, que assombram o país, alimentando o desporto. Caso venha a organizar os Jogos Olímpicos de 2036, Riade está disposta a gastar 500 mil milhões de euros no evento. Depois dos torneios de ténis e golfe, combates de boxe e corridas de Fórmula 1, agora, chegou a vez do futebol. O governo, através de um fundo público, ofereceu aos clubes quase 600 mil milhões de euros para colocar o seu campeonato na rota dos grandes jogadores e da visibilidade do mundo. Ronaldo irá faturar 400 milhões e Benzema 300 no período em que lá jogarem. Messi, só por fazer publicidade ao país, receberá cerca de 20 milhões.
Estas operações, assim como algumas reformas sociais, têm sido feitas pelo príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman – conhecido pelo anagrama “MBS”. Além das prestações desportivas, pretende-se transmitir a imagem de uma Arábia Saudita jovem, dinâmica e empreendedora, capaz de grandes eventos e de uma modernidade consumista. No entanto, sabemos que isto não passa de uma operação de cosmética, impossível de maquilhar a reputação arábica em questões de direitos humanos: as detenções feitas pela Mutaween, a Polícia Religiosa, são muitas e o país possui um grande número de presos políticos; as perseguições, prisões e condenações de ativistas feministas a penas de mais de 30 anos, são frequentes; a discriminação sistémica da minoria xiita – representam 12% da população – é uma constante; os maus tratos a emigrantes, que vivem situações comparadas à escravatura; os homicídios e prisões de jornalistas; e as execuções sumárias em massa, com decapitações realizadas, à espada, em lugares públicos que, entre outras atrocidades, como os chicoteamentos públicos, estão presentes no quotidiano do país. Num só dia, em 2022, decapitaram 81 pessoas. Todos aqueles que se coloquem no caminho de MBS acabam mal. Desde que chegou ao poder, persegue, sem escrúpulos, todo e qualquer cidadão que, no direito da sua liberdade de expressão, seja ativista de uma causa. E não se julgue que, para isso, têm que ser ativistas de cartazes na mão a ditar palavras de ordem na rua. Para ser considerado como tal, e condenado, basta fazer coisas tão simples como partilhar textos no Facebook ou no Twiter.
Apesar destas situações, a Arábia Saudita é o maior amigo do Ocidente no Médio Oriente. Recebe armamento da França, Inglaterra e EUA, que usa, sem escrúpulo algum, na coligação liderada por si, na guerra civil do vizinho Iémen. Aviões, bombas, mísseis, carros de combate, artilharia ligeira e pesada, apoio logístico e serviços de informação, fazem parte dos negócios chorudos, de armas e petróleo, destes países com Riade, em especial os EUA. Com o objetivo comum de destruir o governo da minoria iemenita houthi, a coligação saudita não se tem imiscuído de contratar mercenários sudaneses, combater ao lado da Al-Qaeda e bombardear eventos, estabelecimentos prisionais e até autocarros escolares, massacrando inúmeros inocentes. Se o dinheiro das Arábias levanta areias que escondem as atrocidades dos seus regimes, no último ano, a violação dos territórios ucranianos pela Rússia, veio impedir, ainda mais, que os olhares do mundo se dirijam para esta região. A Cruz Vermelha Internacional, o Observatório de Direitos Humanos e a Amnistia Internacional estão cansados de demonstrar a barbárie. Neste conflito, desde 2015, já morreram perto de 400 000 pessoas, das quais 100 000 eram crianças. A Cruz Vermelha Internacional constituiu inúmeras provas, bastante conclusivas, que servirão de acusação da coligação da Arábia no Tribunal Penal Internacional. Os sauditas, por sua vez, apelidam essas matanças com o vocabulário do costume: “danos colaterais”. Quase nada ou nada disto passa nas televisões ocidentais. Contudo, os mass media iranianos, chineses e russos preenchem os ecrãs das suas televisões com os banhos de sangue deste conflito.
Tudo isto é resultado de uma hipocrisia mundial que já vimos, vemos e, infelizmente, continuaremos a ver, neste e noutros lugares do planeta. É a hipocrisia das dicotomias simplistas, dos bons e dos maus e dos maus e dos bons. A mesma dos “danos colaterais” de um lado e das “operações especiais” do outro.