Cátia Silva integra a equipa de redes sociais da Liga Norte Americana de Futebol Feminino, a única totalmente profissional. Trabalha a partir de casa, em Vilarinho, e chega com conteúdos a cidades como Los Angeles e Nova Iorque. Futebol feminino em Portugal tem tudo para dar o salto com o boom pós-mundial: basta “querer fazer”.
O futebol feminino vive dias de exaltação. A qualificação da seleção nacional para o Campeonato do Mundo, pela primeira vez na história, trouxe reconhecimento público e uma exposição mediática que a grande maioria das jogadoras que integram o grupo de trabalho nunca conheceu na vida.
O lado até agora esquecido do desporto-rei por terras lusitanas, não surgiu do nada. Há percurso feito nas sombras de mulheres que se emanciparam ao estereótipo e se entregaram de corpo e alma a um desporto que durante demasiado tempo as destinou ao rodapé da história.
No final do mês de fevereiro, o secretário de Estado do Desporto, João Paulo Correia visitou o complexo da UDS Roriz onde foi recebido pelas pioneiras do futebol feminino no clube há cerca de vinte anos. Um grupo que pode atestar na primeira pessoa as diferenças entre aquilo que existia e aquilo que existe nos dias que correm.
De facto, é em clubes como o Roriz em que tudo começa. Localmente. Porta a porta com as potenciais jogadoras. Conjuntamente com o Tirsense, a UDS Roriz é o emblema que mais estruturadamente aposta no feminino com equipas seniores. O restante cenário concelhio reduz-se aos escalões de camadas jovens onde as raparigas podem partilhar equipas com os rapazes (no futsal o cenário é diferente onde clubes como o CD Aves possuem escalões de formação específicos para raparigas incluindo equipa sénior).
Cátia Silva, natural de Vilarinho, é especialista em futebol feminino com formação realizada na organização “Women in Football” e em conversa com o Entre Margens explica o que é preciso fazer para fomentar a prática e o desenvolvimento de talento no futebol feminino.
“É preciso abrir as portas”, começa por dizer. “Temos que conseguir que os pais deixem as miúdas jogar à bola e as incentivem da mesma forma a ir a uma aula de balet, piano ou andar nos escuteiros. E quando conseguirmos isso, é importante que os clubes estejam de portas abertas, o que nem sempre acontece”.
O ideal seria, obviamente, que fosse possível ter todos os escalões de formação com equipas de futebol feminino, como acontece no masculino, porém, como tal está intrinsecamente relacionado com barreiras culturais que vão demorar décadas a ultrapassar, a realidade tem de se sobrepor à utopia. E o mais importante é que elas tenham a porta dos clubes aberta a poderem experimentar e jogar.
O Ringe, diz a especialista, é “um bom exemplo” dessa prática de portas abertas que está na sua génese e mantém há décadas, demonstrando claramente que por vezes nem é preciso um grande investimento, mas sim a vontade de quebrar barreiras, permitindo que rapazes e raparigas possam desfrutar do futebol.
Se pensarmos nesta questão como uma pirâmide, a grande prioridade que é necessário fomentar é precisamente a base, para que mais raparigas, desde mais jovens, possam jogar futebol com estrutura. O obstáculo seguinte não é tão fácil de resolver.
“Aqui na região até somos felizardos porque há bastantes clubes de dimensão maior à nossa volta que acolhem muitas jogadoras, mas uma boa parte delas, a partir de determinado nível, quando já não podem jogar com rapazes, têm mesmo de deixar de jogar futebol totalmente”, explica Cátia Silva.
Neste nível intermédio é preciso criar estruturas que possibilitem a existência destes escalões de formação no feminino. Primeiro alargar a base para que o lote de recrutamento seja maior e depois criar condições para que com o avançar da idade elas possam continuar a competir independentes dos rapazes.
“Nem todos os clubes podem ter todos os escalões das camadas jovens femininas, mas tem que haver pelo menos um que tenha o arcaboiço para as receber e continuar o processo de formação mais localmente. Caso contrário, o salto é muito grande e muitas delas deixam de jogar futebol. Os clubes e as entidades responsáveis não podem ter medo de dar o passo seguinte”, argumenta.
Mundial pode ser chave do futuro
A qualificação da seleção nacional para o Campeonato do Mundo que se disputará entre julho e agosto deste ano na Austrália e Nova Zelândia é uma oportunidade de ouro para alavancar de uma vez por todas o futebol feminino em Portugal. A nível internacional esse “boom” é notório após cada torneio, mas só o aproveita quem sabe o que quer fazer e tem uma estratégia a longo prazo para consolidar.
França, que organizou o último mundial, não o conseguiu fazer, mas no reverso da medalha, Inglaterra, que organizou e venceu o Europeu, nunca mais olhará para trás. É uma realidade nova. Cabe a cada federação tirar o melhor partido possível do foco mediático que um torneio deste género traz associado. E Portugal, tem todas as condições para o conseguir. Assim o queira.
“O segredo para o futebol feminino é querer fazer”, realça Cátia Silva. “Até agora tudo foi feito sem recursos e eu não posso bater palmas quando se diz que em dez anos conseguimos ter 12 mil atletas federadas num país onde o futebol é quase desporto único. As infraestruturas estão todas montadas. Esta federação tem tudo, até um canal de televisão. Precisa é de adaptar-se ao produto do futebol feminino”.
É que apesar de ser o mesmo desporto, o produto em si é distinto do masculino. Abre-se a setores que muitas vezes não se agarram ao futebol masculino, vai buscar novos públicos, é mais familiar, mais acessível e com uma proximidade muito maior com as protagonistas do jogo.
A oportunidade existe, as peças estão todas em campo, só falta dar um passo assertivo em frente, não se ficando por um mero “tick the box” num qualquer plano estratégico na gaveta de um qualquer gabinete.
Sonho americano
Ter uma carreira ligada ao futebol feminino ainda não é um “el dorado” para ninguém e a jovem vilarinhense não é exceção. Depois de completar a sua formação na “Women in Football”, na Suíça, passou pelo Brighton, clube britânico, até que decidiu aventurar-se pela consultoria de futebol ligada à área educacional em contacto com a Euopean Club Association (ECA), UEFA e FIFA. Tempo que dividia com as responsabilidades que tinha no departamento marketing e comunicação da primeira agência de jogadores inteiramente dedicada ao futebol feminino em Portugal.
No momento e que decidiu afastar-se no universo do agenciamento de jogadores, mesmo mantendo a vertente de consultoria, começou a abrir horizontes mais vastos até que surgiu a oportunidade de se candidatar a um estágio de seis meses na National Women’s Soccer League (NWSL), Liga Norte Americana de Futebol Feminino, a única totalmente profissional e independente em todo o mundo. Um desafio que lhe agradou, não só pela dimensão do projeto, mas porque lhe permitia trabalhar a partir de casa.
Esteve seis meses no âmbito desse programa de estágio a trabalhar em conteúdos para as redes sociais com as maiores estrelas do futebol feminino mundial: de Megan Rapinoe a Alex Morgan.
Um trabalho que lhe valeu o reconhecimento na forma de uma oferta de trabalho numa das equipas, superada apenas por uma proposta da própria Comissária da Liga, Jessica Berman. Hoje, integra a equipa das redes sociais da competição, sendo responsável pelos conteúdos para a plataforma Tik Tok.
“Sou uma espécie de central de informação”, revela Cátia Silva. “Recebo os conteúdos de todos os jogos, de todo o país, de Nova Iorque a Los Angeles, e o meu trabalho é transformar o material em conteúdos para o Tik Tok. Chegam-me mais de duzentos vídeos todas as noites e o desafio passa por fazer a triagem e divulgar aquilo que terá mais impacto. Não nos podemos esquecer que as redes são a face visível da liga, mexe com marketing das maiores estrelas do mundo”. Com o defeso a terminar, a liga norte americana tem o regresso agendado para o próximo dia 20 de março, virando do avesso os horários da jovem vilarinhense que faz da casa de família, na freguesia da zona nascente do concelho, o inusitado epicentro dos conteúdos virais do futebol feminino norte-americano.