[Crónica] Professora Cecília Paim

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Num ápice, naquela bela manhã de 11 de fevereiro, um imenso mar de manifestantes rebentou pelas costuras a icónica Avenida da Liberdade.

Sentia-se no ar a tensão febril dos momentos “ou vai ou racha”, o travo amargo de uma longa revolta que por demasiado tempo fora refreada, o trovão de milhares de vozes há muito tolhidas e que, naquele abril temporão, se soltaram livres num ingente grito por “respeito”.

Exaustos, insurgiam-se contra o longo maremoto de medidas erráticas e manhosas que os agrilhoaram a uma miríade de tarefas burocráticas, que lhes suga tempo e serenidade para educar. Indignavam-se contra o desterro, sem culpa formada, que condenou uma boa parte deles a um interminável nomadismo que os arranca dos braços da família e amigos. Revoltavam-se contra a injusta desconsideração que paulatinamente foi enxovalhando a sua sacra missão, ao miserável ponto, como contava um deles, de ouvir uma mãe dizer que esperava que o filho fosse, ao menos, Professor. Saltava à vista que nenhum deles arredaria mais um passo que fosse em direção ao bafo pestilento daquele abismo para onde há tanto tempo eram empurrados.

Nunca se vira tamanho protesto e tamanha unanimidade. Nunca se vira tantos Professores zangados.

Enquanto por um canto de um olho via as impressionantes imagens que durante todo o dia encheram os ecrãs noticiosos, quase jurava que o Zezé, montado no seu deslumbrante Minguinho ajaezado com os seus mais bonitos arreios de gala, escapou das folhas mágicas do livro, que pela milésima vez relia, e como uma seta, irrompeu Avenida fora num cinematográfico galope à Buck Jones em direção à Professora Cecília que, em pose de deusa Libertas, entestava aquele imenso mar de gente empunhando, em vez da tocha, uma flor velha e murcha.

Num dramático contraluz, o garboso corcel empinou-se volteando as patas da frente, enquanto soltava ao vento um soberbo e ecoado relincho. Estilosamente, o Zezé desmontou-se, e com um meneio cavalheiresco, rojou o joelho ao chão e tributou à sua Professora triste, a mais linda e fresca flor de Portugal.

Ao contrário do mundo inteiro, incluindo ele próprio, que de fonte limpa o sabiam “menino diabo”, a sua Professora triste, ao primeiro olhar, descortinou o seu coração de ouro e o “menino Jesus” que ele, “ao menos uma vez na vida, gostaria de ser”. Foi ela que lhe semeou no coração as delícias da ternura, que ele nunca mais deixou de pôr “em tudo o que gostava”. Com ela e por ela aprendera a escutar e a ver a “poesia a viver” e a brincar e a conversar “com a vida”. O Zezé, hoje homem feito, não esqueceu nem um único dos muitos sonhos recheados com que ela tantas vezes lhe matou a fome. Foi ela que, pela primeira vez, fez dele o melhor, o seu melhor aluno. Foi ela que o fez acreditar que ele poderia ser tudo o que sonhasse, até mesmo um poeta de verdade, daqueles com laço de seda e tudo. Foi ela que lhe recheou a vida de sonhos.

A Professora Cecília era uma Professora triste, porque testemunhava, vezes de mais, o assassínio das sementes de sonho que lançava no coração dos seus alunos, às mãos impiedosas da miséria. Um dia que a viu a tentar disfarçar umas lágrimas que lhe corriam cara abaixo, o menino Zezé, fazendo-se mais valente que o Buck Jones, cruzou solenemente os indicadores sobre os lábios e jurou que não deixaria que miséria nenhuma matasse os sonhos que ela semeara no seu coração. Jurou, também, que a partir daquele dia, a sua mesa teria sempre uma flor tão linda como as que alindavam as mesas das Professoras dos meninos ricos. E como um verdadeiro cavalheiro, o Zezé, que também dá pelo nome de José Mauro de Vasconcelos, cumpriu a sua palavra multiplicando por mil as sementes de sonho que ele com tanta ternura semeara no seu coração. Fazendo-a a mais feliz de todas as Professoras, ofertou-lhe a ela e ao mundo, tesouros de valor incalculável como “O Meu Pé de Laranja Lima”,  “Banana Brava”, “Barro Blanco”, “Longe da Terra”, “Vazante”, “Arara Vermelha”, “Arraia de Fogo, “Rosinha, Minha Canoa”, “O Garanhão da praia”, “Coração de Vidro”, “As Confissões de Frei Abóbora”, “Rua Descalça”, “O Palácio Japonês”, “Farinha Órfã”, “Chuva Crioula”, “O Veleiro de Cristal”, “Vamos Aquecer o Sol”, “A Ceia”, “O Menino Invisível” e “Kuryala: Capitão e Carajá”.

Ensinou-nos que o ouro, os diamantes e o petróleo são estéreis, efémeros e fúteis e que a única riqueza que se multiplica, que perdura e que verdadeiramente releva é, sem sombra de qualquer dúvida, a educação. Só ela nos desvela a beleza do amor, da família, da amizade, da fraternidade, das artes, enfim, das coisas belas da vida. Sem educação o ouro, os diamantes, o petróleo e quejandos são apenas sementes de ganância, injustiça, revolta e desgraça. A educação é a única semente que pode medrar uma sociedade livre, justa e harmoniosa.

Nos primeiros 25 anos de vida, os nossos filhos estão nas mãos dos Professores e Professoras, 8 das 16 horas que estão acordados. Eles são, por isso, a semente, a água e o húmus da sua educação. É nas mãos Deles e Delas que depositamos o futuro dos nossos filhos e da humanidade. Temos, por isso, de ser tão valentes como o Zezé e desencantar uma qualquer magia que acautele os sonhos de quem semeia os sonhos dos nossos filhos e que, de uma vez por todas, os faça felizes.

Temos de cuidar para que Eles e Elas, tal como a Professora Cecília Paim do livro “O Meu Pé de Laranja Lima”, nunca mais deixem de enxergar nas suas mesas “a flor mais linda do mundo”.

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