[Opinião] A ditadura do regimento

Ana Isabel Silva CRÓNICAS/OPINIÃO

Marcelo Rebelo de Sousa, porventura o Presidente da República mais popular da história da democracia portuguesa, proferiu uma declaração infeliz, motivando uma indignação generalizada na população portuguesa. Em resumo, procurou estabelecer uma comparação estatística com outros países, da qual concluiu que 400 caso, de alegados abusos sexuais dentro de instituições ligadas à igreja católica portuguesa, não se afigura “particularmente elevado”. A indignação coletiva é, a meu ver, perfeitamente justiçada.

Em primeiro lugar, a declaração do PR não é um ato isolado. É o mais grave, mas vem numa sequência de episódios titubeantes, por parte de Marcelo, no quais se exija assertividade perante a Igreja, no que toca a esta ter de responder pelas suas eventuais responsabilidades.

Em segundo, 400 não é o número total, contabilizado, dos casos (como Marcelo acabou por constatar no seu pedido de desculpas). É o número de denúncias feitas até agora. Pela sua natureza, este tipo de crimes coloca demasiados fardos sobre os ombros das vítimas, tornando a denúncia extremamente difícil por parte das mesmas. Portanto, o número é provavelmente maior. Relativizar e fechar o assunto nos 400 nem para fins estatísticos é útil, antes pelo contrário.

“Sabemos que não uma qualquer ‘ditadura do regimento’. Há sim, um desrespeito por órgãos eleitos e intimidação para travar qualquer tentativa de escrutínio e discussão política”

Em terceiro, mesmo que 400 fosse o número total, Marcelo não estava a comparar outro tipo de crime qualquer. Se Marcelo constatasse haver em Portugal menos furtos do que noutro país não era especialmente grave. Porquê? Por se tratar de um conjunto, tipificado, de crimes infelizmente inextinguíveis (por muito que se possa fazer para que diminuam), geograficamente dispersos e de autoria diversa, não havendo ligação entre os mesmos. Nós, como sociedade, não podemos encarar como normal um conjunto padronizado de crimes sexuais dentro de instalações de uma instituição específica, relativamente aos quais há a suspeita de encobrimento por parte da cúpula da mesma.  Não podemos encarar como normal, independentemente de tal ocorrer, com maior ou menor número, noutros países. A globalização do padrão torna o cenário ainda pior, não é motivo para conformismo.

Em quarto, há mais uma diferença entre fazer observação estatística com outros crimes e com crimes sexuais. Nos crimes sexuais as vítimas, pelo menos parte delas, estão vivas, os danos são pervasivos, e nem todas constam entre as denúncias feitas (pelos motivos enunciados acima). Ao relativizar o número, o Marcelo relativiza também a coragem dos 400 que denunciaram. Pior do que isso, negligencia o silêncio dos outros. Em quinto, a sensibilidade é uma qualidade política. Não é um acrescento para enfeitar. Marcelo demonstrou tê-la muitas vezes, e em momentos cruciais, ao longo dos seus dois mandatos. Eu, que nunca votei em Marcelo, não duvido de que está ao lado das vítimas e da Justiça. Não duvido do seu humanismo e do respeito pelo Estado de Direito. Neste caso falhou retumbantemente. Esperemos que não deixe marcas.

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