Finalmente, chegou o grande dia, e desde madrugada cerrada, que, num frenético bulício, todos se azafamavam num constante e, aparente, caótico vaivém. No fogão de ferro a lenha, crepitava, há muito, o fogo que frigia bolinhos de bacalhau e afofadas pataniscas, soltando aromas de fazer crescer água na boca. Num ápice, que sem mata-bicho, o trabalho não corre, uma imensa mesa coberta por uma toalha de linho caseiro foi abonada com broa caseira, azeitonas, presunto, bacalhau frito, pataniscas e bolinhos de bacalhau. Para aconchegar os pitéus, coloriu-se a mesa com umas quantas infusas de vinho verde tinto carrascão e uma garrafita de aguardente, para garantir o decesso do dito “bicho”.
Família, amigos e vizinhos foram-se amesendando, numa animação crescente e, saciados o corpo e a alma, os homens lançaram as escadas às ramadas altas e aos arjoados, “que parecia mal as mulheres subirem às escadas”. Entre cantorias, piropos e piadas, muitas subidas e descidas, foram-se despindo as ramadas e enchendo os cestos que se despejavam no lagar. A “canalha”, num alvoroço pegado, tinha como missão apanhar os bagos que caiam ao chão, que daquele ouro nem um bago se podia perder. Mas os bagos estavam muito longe de ser a maior preocupação dos putos, e estes, mal lobrigavam uma escada momentaneamente vazia, escapuliam-se ágeis por ela acima, armados em homens grandes. Para seu grande desgosto, acabavam, invariavelmente, corridos com um par de mosquetes, mais ou menos simbólicos e, cabisbaixos, lá tinham que fingir por uns minutos que apanhavam mais uns baguitos. A festa acabava no lagar, em grande e rija folia. Em linha e em passo cadenciado por velhas cantilenas, pisavam-se longa e pacientemente as uvas que se iam fazendo mosto que, a seu tempo, levedaria o ancestral néctar dos deuses, paparico de ricos e consolo e arrimo dos pobres.
“Para mal dos meus pecados, a minha cultura geral tem mais buracos que as saudosas máquinas de furos dos chocolates Regina. Mas há uma cratera que me desgosta especialmente, apesar de ter crescido à sombra dos ramadas e sob o aroma das uvas, do mosto e do vinho, sou um medíocre, para não dizer pior, conhecedor deste ancestral pilar da alma lusa”
Adélio Castro
Apesar de o inexorável advento dos tempos novos ter mirrado as ramadas, quase até à extinção, fui, mesmo assim, suficientemente afortunado para ver durante uma grande parte da minha vida, o chão da quase totalidade deste meu pequeno reino, entalado entre o Minho e o Douro Litoral, chapelado por belíssimas latadas de onde as suas boas gentes garimpavam o inigualável vinho verde. Muitos anos depois daquela inesquecível vindima, já pai e com idade mais que suficiente para subir às escadas, os almoços de domingo em casa dos meus pais, eram ainda principescamente regados com o verde das suas ramadas. Nesses dias, sentia que aquelas terras, aquelas cepas e aquelas uvas eram preciosas dádivas criadas com o único desígnio de conceber um vinho para ser degustado ali, naquela mesa feita de uma mó de moinho, à sombra do velho diospireiro, onde almoçava toda a família, enquanto os olhos dos avós se riam, velando os netos, que por ali cabriolavam, mais soltos e livres que andorinhas.
Para mal dos meus pecados, a minha cultura geral tem mais buracos que as saudosas máquinas de furos dos chocolates Regina. Mas há uma cratera que me desgosta especialmente, apesar de ter crescido à sombra das ramadas e sob o aroma das uvas, do mosto e do vinho, sou um medíocre, para não dizer pior, conhecedor deste ancestral pilar da alma lusa. Almejo desde há muito, diga-se de passagem, sem sucesso nenhum, alcançar suficiente ciência para fariscar, pelo menos, um punhadito da imensa multiplicidade dos aromas enânticos, e de degustar, com básicos conhecimentos de causa, os paraísos que evolam, voluptuosos, dos autênticos poemas impressos a letras de ouro nos rótulos das garrafas de vinho. Mas a verdade é que sempre que me vejo perante um parágrafo de literatura maior, do género: “Apresenta um nariz de grande complexidade, com um toque sofisticado a caril, pimenta, cravinho, noz-moscada e trufas, salientando-se umas notas de “sous-bois”, aromas balsâmicos a resina, cedro, a caixa de tabaco, notas minerais e uma madeira discreta bem integrada.”, chavetado a ouro com um: “Na boca é intenso e vibrante devido a uma excelente acidez, com taninos de grande qualidade, estando em destaque notas de especiarias e resinosas, com final muito longo e de grande elegância.”, por mais que prove e volte a provar, quedo-me, invariavelmente, “como um boi a olhar para um palácio” e, bronco, lá me resigno a continuar a dividir os vinhos apenas em dois grupos, os que gosto e os que não gosto.
Apesar deste aleijão cultural, busco, há que tempos, um vinho que tenha, pelo menos, uma pequenita semelhança com o vinho das ramadas dos meus pais. Infelizmente, apesar de ele não apresentar um nariz de grande complexidade, nem notas de aromas balsâmicos a resina, cedro, a caixa de tabaco e menos ainda um final muito longo e de grande elegância, e de ser apenas um modesto vinho verde branco, com baixo teor alcoólico, com um nariz de grande simplicidade, de agulha modesta e com uma boca fresca, honesta e leal, que se deixava beber generosamente, sem nos rasteirar o aprumo e sem nos lançar ao opróbrio da valeta, o facto é que a minha demanda tem sido um rotundo e persistente fracasso.
Estou cada dia mais convencido, que os enólogos ainda não conseguiram alquimiar um vinho com aquele “sous-bois” de carinho, harmonia, felicidade, com um portentoso toque a saudade que só aquele vinho de sonho, degustado nos almoços de domingo com a família, naquela mesa feita de uma mó, à sombra do velho diospireiro, com risos de avós e crianças a cabriolar, ofertava.