A primeira metade do século XIX foi marcada por um conjunto de guerras, guerrilhas, revoluções e revoltas que mudaram indelevelmente o imaginário dos portugueses. Causas ideológicas e motivos à parte, nas nações que emergem de um conflito bélico prolongado, após longos períodos de lutas, alguns homens não conseguem alhear-se da sua condição de combatentes. Após os conflitos e com o regresso à paz, para eles também chega um vazio. Foi o que sucedeu no século XIX em Portugal continental. Grupos de antigos soldados da Guerra Peninsular (1807-1814) e da Guerra Civil (1830-1834) acudiram a revoltas e guerrilhas que assolaram o país, em especial a célebre Patuleia, em 1846/47. Vencidas ou perdidas as causas ou os vencimentos das lutas, alguns continuaram em bando, executando vinganças, fazendo justiça popular, recrutando outros homens e formando escola do seu ofício.
O Zé do Telhado, de Recesinhos, Penafiel, destacado combatente setembrista, foi imortalizado pelo romance de Camilo que, na liberdade da escrita, delineou o imaginário histórico que conhecemos do famoso bandoleiro, combinando factos e quimeras em novelas preciosas para a literatura portuguesa. O ultra-romantismo camiliano ascendeu Zé do Telhado à condição de justo, homem que tirava a ricos para dar a pobres, matéria de várias produções televisivas e cinematográficas, sonho utópico para as mãos de um indivíduo só. O mesmo escritor, na obra A Morgada de Romariz, não é parco em demonstrar ao leitor os feitos das quadrilhas. Verídicos ou concebidos pelo escritor, o Faísca, o Zé Landim e o Luís Meirinho bem que tentaram roubar a herança do pai do Faísca, em Vermoim. Sem êxito. No entanto, em 1932, a fama dos seus feitos persistia, nesta mescla de dúvidas. Segundo o jornal O Século, de 21 de maio desse ano, na Quinta da Oliveira, em Santa Marinha de Landim, um jornaleiro encontrou quatro barras de ouro enterradas numa bouça. Um desses lingotes foi vendido em Santo Tirso, outros dois no Porto e ainda sobrou o quarto para ser confiscado pela Administração de Famalicão. Nesse período, não faltou quem especulasse que o entesouramento e o esconderijo tinham sido obra do Zé Landim…
Mas outras quadrilhas existiram pelo país e o Vale do Ave foi viveiro para muitas, mais factuais que as da literatura camiliana. No século XIX, nos caminhos e estradas circulava gente de dinheiro no bolso: a burguesia, possuidora de capitais obtidos na indústria e no comércio que então geravam novas receitas; os lavradores proprietários abastados, que se dedicavam à exportação de bois de engorda para Inglaterra; e os brasileiros torna-viagem. Eram gente que andava a cavalo ou de charrete, que negociava sempre a pronto, desconfiada das letras, das transações bancárias e dos impostos. Na verdade, eram alvos apetecíveis para os quadrilheiros que rodeavam as estradas.
Dessas comunidades de salteadores de estrada, para os lados de Guimarães, foram famosas duas: uma, a dos «Frades Tonsurados», ativa a partir de 1815 e, em finais do século, a do «Papa Açúcar». Na primeira foi capataz do bando Frei João de Santa Teresa de Jesus, conhecido como Frei João Lombela do Convento de São Francisco, herdeiro e vezeiro de entradas, saídas e fugas no cárcere do mesmo cenóbio. À mesma pertenciam também Frei Manuel do Ribeiro, devoto capucho da freguesia de Brito, o Pe. Rodrigo de Vasconcelos e Frei Tigeleiro. Após vinte e cinco anos de terror, entre a Póvoa de Lanhoso, Guimarães e Fafe, foi desmantelada pela polícia. A segunda, ativa entre 1883 e 1890, teve entre os seus elementos de Famalicão e Guimarães, salteadores e recetores de bens furtados. Além de assaltos em Guimarães, Famalicão e Santo Tirso conforme nos atesta Vítor Emanuel Mendes de Oliveira na sua tese «No Encalço da Quadrilha do Papa Assucar». Aliás, como se verifica no mesmo trabalho, a ação do bando estendia-se ainda a Santo Tirso dado que muitos dos seus elementos cooperavam com a quadrilha do Lourenço Ladrão.
Além deste, por cá, eram famosas as quadrilhas da Terra Negra, como a dos Vendas e dos Gamelas, ativas entre Santo Tirso e Famalicão. Atuavam mais na parte poente do concelho, entre Bougado e Ribeirão, nas bermas das estradas, em sítios escuros e desabitados, propícios a emboscadas. Além das vítimas, deixaram muitas histórias das quais Augusto César Pires de Lima nos deixou alguns relatos na Revista de Guimarães. Nada que a comitiva do Lourenço também não fizesse nas zonas mais a nascente do concelho. Dela faziam parte: o Francisco Pereira Duarte, alcunhado de Conca, que seria provavelmente de Ruivães; o Paulino Ferreira, conhecido como O do Relógio, também de Ruivães; o António Dias e o João Dias, conhecidos pelos irmãos Santa Marinha. Todos se envolveram em assaltos, alguns deles famosos, entre Santo Tirso e Guimarães. Os mais conhecidos visaram templos religiosos como as igrejas de Sequeirô, Lama, Monte Córdova, Avidos, Nespereira e São Miguel das Caldas. Contudo, o mais célebre culminou com a sua detenção durante um roubo ao Mosteiro de Santo Tirso, em junho de 1887. O caso teve cobertura da imprensa local, principalmente no Jornal de Santo Thyrso.
“O ultra-romantismo camiliano ascendeu Zé do Telhado à condição de justo, homem que tirava a ricos para dar a pobres, matéria de várias produções televisivas e cinematográficas, sonho utópico para as mãos de um indivíduo só”.
Napoleão Ribeiro
Desde a infância que muitos de nós ouvimos falar das façanhas mais ou menos lendárias que, no passado, no tempo dos avós dos nossos avós, a quadrilha do Lourenço por aqui fez. Ao que parece, e do modo como ainda é relembrado, tal como todos os líderes do crime era respeitado e, sobretudo, temido. A lenda mais corrente, que ouvi desde criança nos serões com a minha família, passou-se, ao que se diz, com os meus bisavôs maternos, moradores numa pequena casa no lugar de Gomariz, em Sequeirô. Desconheço se foi verídica ou efabulada. Consta que um dia foram à romaria de São Gualter, a Guimarães, e testemunharam um roubo do Lourenço. Este, enquanto caminhava atrás de uma senhora, junto às costas, cortou-lhe o cordão de ouro do pescoço sem que ela se apercebesse. Depois, e com o andar da mulher, o mesmo cordão acabou por cair ao chão e o Lourenço, sorrateiramente, apanhou-o e guardou-o. Olhares cruzados e o Lourenço viu que os meus bisavós assistiram a tudo. Perante o sucedido, e temendo represálias, dada a fama do bandoleiro, nada disseram. Mesmo assim temeram e voltaram para casa em sobressalto já que o Lourenço, enquanto apanhava o cordão do chão, encarou olhos nos olhos com a minha bisavó. De facto ele percebeu que o casal testemunhara o feito.
Ao que constava, o Lourenço sabia de relojoeiro, sendo essa a sua profissão de aparato. Passado algum tempo, após a passagem das gualterianas, o meu bisavô Manuel encontrou o Lourenço na feira de Santo Tirso e pediu-lhe que passasse por sua casa para reparar um relógio de parede que se encontrava avariado. Não acertaram data e a coisa ficou meia apalavrada, de carácter não urgente. Um dia, pela madrugada, os meus bisavós acordaram ao som dos toques do relógio a funcionar. Na cozinha, em cima da mesa, o presunto estava lascado e uma caneca de vinho vazia. O relojoeiro fez o serviço de noite e só cobrou a merenda pela reparação. Em silêncio o Lourenço retribuiu o silêncio de Guimarães…