“O Rei está a Morrer”, um “parto feliz” do Grupo de Teatro AVISCENA

ATUALIDADE

(Publicado na edição de 11 de outubro de 2018 do Entre Margens)

A estreia recente desta peça representativa do teatro do Absurdo, da autoria do romeno Eugénio Ionesco (que escreveu toda a sua dramaturgia em língua francesa) e que eu, há cerca de quinze anos, ousei traduzir imaginando já que um dia o Aviscena nela pegaria para arroubos mais futuristas, conheceu agora um “parto feliz”.
Estes jovens atores tiveram que “confrontar-se”, refletir e “digerir”, ao longo de meses de ensaios, a realidade literária deste texto, assumindo o diálogo produtivo entre meia dúzia de personagens que interagem nas circunstâncias-limite da morte previamente anunciada daquele que é Rei e Senhor de um simbólico Reino: – “um homem, rei de um reino em total desmembramento, senhor de um exército que já lhe não obedece, dono e senhor da sua história e do progresso científico que edificou, de repente, perde as rédeas do seu poder e, com a sua decrepitude, arrasta tudo e todos para o abismo e o caos”. O espetáculo que vimos acontecer no passado dia 22 de setembro e outros dias subsequentes, diga-se, foi um parto feliz, em resultado de um ato de amor e produção coletiva a partir desse confronto com um texto individual, solitário e altamente simbólico. Estiveram bem os atores, dentro das exigências relativas e algumas tremendamente diferenciadas da “máscara” que a cada um convinha adotar em palco; estiveram bem os responsáveis pela cenografia e sonoplastia, enfim, os responsáveis pela promoção do espetáculo, fotografia e cartazes. E creio que o público que assistiu a este e aos demais espetáculos também se deixou contagiar pelo evento e “apadrinhou” a “criança”.
O espetáculo que decorre sob os nossos olhos é um cerimonial trágico- cómico, de um Rei ainda vagamente descrente e sonâmbulo, e que só lentamente desperta para o “mistério insondável da sua própria morte” e para a evidência de que, com a sua morte, o mundo à sua volta como que se desmorona também. Assistem a este cerimonial duas personagens do seu séquito privado: por um lado, a rainha Margarida, sua esposa legítima para, em nome da Honra, do dever e da compostura e a contragosto do Rei, o ajudar a encarar a morte com a disciplina, o rigor e a sobriedade com que nunca ele conseguiu encarar a vida e o exercício do seu reinado; por outro, a rainha Maria, sua amante e a predileta do seu coração que, tendo-lhe satisfeito em vida todos os caprichos, ainda agora, diante das evidências e estertores da doença que começam a minar o rei, mais não faz senão apelar à lamechice e à pura chantagem emocional. Três outras testemunhas representativas do setor público participam também nesta Cerimónia: um Guardião, símbolo da etiqueta cortesã, da informação e propaganda, da Ordem e da parada militar que ainda subsistem num Estado cada vez mais minimalista; Julieta, criada e enfermeira da corte, tão capaz das maiores subserviências como de artimanhas e coscuvilhices próprias do extrato mais baixo a que pertence; finalmente, sua Sumidade o Médico, meio cirurgião e meio bruxo, mas também, se preciso for, “carrasco” e capaz de tirar a vida a um qualquer impostor, homem dos sete ofícios, além de astrólogo e vidente e, portanto, tão expedito em lidar com a morte do Rei com a mesma indiferença clínica com que o faria com a de qualquer banal terráqueo.
Diga-se, no entanto, que este Rei é de facto o Protagonista desta Cerimónia. É nele que se fundem e se esgotam todas as demais personagens para evidenciarem a Pompa e a Circunstância do seu aparato e do seu despojamento real; o homem, todo o homem é um rei que, pelo nascimento, recebe o mundo, o espaço e o tempo; no limiar da sua morte, ao despojar-se da sua magnificência, o homem é um rei em processo de abdicação do poder adquirido, um Rei-Sol em toda a sua decadência, a despojar-se de si, do mundo e de toda a circunstância de espaço e tempo que incorporou ou que lhe foi legada.

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