Por circunstâncias da vida vivi o aniversário dos 50 anos do 25 de abril à distância. Quando submeti uma candidatura para uma conferência em Inglaterra, não me ocorreu, estupidamente, que se esta se realizava a 26 de abril provavelmente teria de viajar na véspera, 25.
Tudo bem, coloquei um cravo vermelho de papel a sair pelo bolso e deambulei com ele pelas fronteiras afora, por terra e pelo ar.
No final do dia 25, após uma série de peripécias que tornaram o dia agitado, dei comigo num hotel estrangeiro, preso a um computador, a consumir tudo o que podia de conteúdo noticioso sobre os 50 anos da Liberdade. Vi as praças do país cheias, como há muito não se via, e uma senhora, sentada na sua cadeira de rodas, com cravos vermelhos no regaço.
Celeste Caeiro, a mulher que do acaso forjou a necessidade, e num gesto fortuito e definitivo deu o símbolo e nome à nossa revolução – a Revolução dos Cravos. Celeste contava a história. Detalhadamente explicava como as mãos dos soldados, os canos das armas, e a praça se encherem de cravos vermelhos naquele dia de primavera de 1974. Talvez a solidão e distância tenham contribuído para isso, mas foi difícil suster a comoção.
Nasci em 1991, nasci livre, e assim vivo até hoje. Sou-o devido a esse momento originário em que um povo, na sua diferença, acolheu a liberdade, como os cravos que Celeste acolhe no seu regaço. Sou livre, porque do desejo de liberdade nasceu a democracia portuguesa, o Estado de Direito e a Constituição, que nos consagram direitos e liberdades fundamentais e o pluralismo ideológico e partidário.
Mas também nasci livre porque não nasci isolado e desamparado. Nasci livre porque nasci num hospital do SNS, recebi instrução na Escola Pública, e fui educado num contexto familiar que, em grande parte devido às conquistas de abril, me granjeou oportunidades de desenvolvimento, incomparáveis com aquelas às quais as gerações anteriores à minha tiveram acesso.
Desde a primeira hora, a Liberdade de abril encerra em si um substrato material, e não meramente formal, plasmada na nossa constituição e no Estado Social que em sociedade construímos. Se consagramos a dignidade de cada pessoa na sua individualidade, depressa também percebemos que ninguém é uma ilha, e que os direitos e oportunidade que perfazem a liberdade individual (ou melhor, as liberdades individuais) são apenas concretizáveis em rede, através de relações sociais de cooperação e interdependência.
Não é por acaso que a Pobreza foi tão operativa para o Estado Novo. A privação, em todas as suas dimensões, induz à subordinação, à obediência, e torna o autoritarismo efetivo. Quando desapossadas, as pessoas perdem também a posse da sua individualidade e tornam-se servas.
Por isso a liberdade de abril nunca poderia ser apenas formal, mas a liberdade a sério que tão bem nos canta o Sérgio Godinho.
Cinquenta anos após o 25 de abril, vemos a nossa liberdade, quer no aspeto formal quer no aspeto material, atentada pelos seus inimigos, que tão mal convivem com ela.
Cinquenta anos após o 25 de abril, reconhecemos que há muito por fazer num país que continua a ser demasiado pobre e desigual. Mas também sabemos do muito que fizemos e conquistamos, e jamais sucumbiremos a quem nos quer retroceder.
25 de abril sempre!
Fascismo nunca mais!