O maniqueísmo é tentador. A vida seria muito mais simples se o bem e do mal estivessem dispostos na oposição entre dois blocos homogéneos e cristalizados. Poderíamos dormir descansados no lugar do passageiro. O nosso condutor é bom, faça o que fizer. Pouparíamos nos esforços de vigilância e compreensão. A vítima nunca poderia ser colocada no lugar do carrasco e vice-versa. É uma forma pobre e perigosa de olhar a realidade.
Este pensamento, à la Star Wars, tem contaminado o debate público desde os acontecimentos do passado 7 de outubro. Num primeiro momento houve quem visse nos ataques do Hamas um gesto legítimo de resistência. Se em Israel “estão os maus”, então qualquer ataque aos “maus” só pode ser justo, certo? O raciocínio erra na avaliação do alvo, do método, e dos autores. Todos e quaisquer civis não perfazem o “mal” pelo simples facto de serem israelitas (não há culpas coletivas), nada justifica que possam ser raptados e mortos, e um grupo que perpetra estes atos, oprime os palestinianos e tem como programa uma limpeza étnica não pode ser visto como um grupo de libertação.
Por conseguinte, em Israel estão os “bons” e por isso têm todo o direito de cercar dois milhões de pessoas em Gaza, cortar-lhes os abastecimentos, deslocalizá-los, e bombardeá-los indiscriminadamente?
Não, não têm esse direito. O raciocínio volta a errar na avaliação do alvo, do método, e dos autores. Os palestinianos não são terroristas pelo facto de serem palestinianos (nem o Hamas representa a Palestina), nada justifica que possam ser exterminados indiscriminadamente, e o governo de Netanyahu não se move por uma solução justa. Para o governo israelita os palestinianos são menos humanos do que os israelitas, e o Estado Palestiniano não tem direito a existir.
Com isto não pretendo ser salomónico (invocar Salomão pode não ser a expressão mais feliz neste tema). É impossível ignorar a assimetria de forças. Israel é uma potência militar. Os palestinianos vivem oprimidos sob um regime de apartheid. Até as áreas supostamente destinadas à Palestina (que se tornaram cada vez menos ao longo da História) vivem asfixiadas por muros, colonatos, e cercos políticos, miliares e económicos, por parte de Israel.
Clarificando a minha posição, também não pretendo uma inversão de posições. Defendo a solução dos dois Estados.
Retomando o tema inicial, o mesmo sistema de valores que faz com que qualquer pessoa com o mínimo de humanidade condene os atos hediondos de 7 de outubro, perpetrados por uma organização terrorista, fica suspenso quando assistimos, em direto, a este Big Brother com contornos genocidas? Que dissonância cognitiva é esta que dá o aval para que o Estado de Israel tenha livre-trânsito, na faixa de Gaza, para levar ao extremo o seu terrorismo de Estado?
Num livro de Machado de Assis o protagonista libertou o seu escravo. Tornando-se livre, o que ele fez? Arranjou um escravo. Numa sociedade dividida entre senhores e escravos, confundiu “ser livre” com “ser opressor”. A liberdade não começa quando o chicote muda de mãos. A liberdade só chega quando o chicote acabar. Quando nos libertamos das grilhetas da desumanização.