[Crónica] Pela arquitetura vernacular: os caseiros de terras

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Conforme já referimos em artigo anterior, muitas das casas de lavoura mais antigas chegaram até à atualidade em pleno uso funcional. Algumas, no passado, foram a casa principal dos proprietários e, posteriormente, aquando da construção de um novo edifício principal destinado a acolher as famílias desses mesmos senhorios, tornaram-se num edifício secundário, já que passaram a servir de habitação às famílias de caseiros que passavam pela quinta. A maior parte dessas quintas mais antigas situa-se nas melhores zonas de lavradio das freguesias – as veigas ou várzeas – localizadas nos vales e nas encostas viradas a sul, mais solarengas. Durante séculos foram pertença da nobreza e das ordens religiosas. Com a extinção destas congregações, em 1834, foram rapidamente vendidas a quem tinha posses, por norma a nobreza e a pequena burguesia, regra geral, comerciantes, artífices e industriais. No mesmo século XIX, o poder económico destes proprietários rurais, propiciou que os seus filhos estudassem e, consequentemente, se empregassem, tanto nos serviços, públicos e privados, como na gestão das empresas, vincando o distanciamento dos terra-tenentes em relação à maioria da população, iletrada e servil.

As quintas das terras mais altas, menos férteis, por norma, não são tão antigas, e eram pertença de famílias-proprietárias que trabalhavam a própria terra. Surgiram durante o século XIX, aquando do desmembramento e venda a privados dos terrenos dos montes comunitários – os baldios – onde, até aí, se pastoreavam os gados da freguesia e se apanhavam os matos e lenhas. Na sua maior parte, foram adquiridas por gente com menos posses, que as amanhava sem recorrer a mão-de-obra externa à casa e que, só muito raramente, as entregavam a caseiros já que o seu sustento dependia muito da produção pecuária, das frutas e cereais da mesma.

Voltando às quintas mais antigas, recorde-se que, durante o século XX, por norma, pertenciam, maioritariamente, a proprietários que as herdavam. As que possuíam a casa matriz, onde habitava o patrão, eram trabalhadas por criados, que aí viviam, e pela mão-de-obra dos jornaleiros, a quem recorriam consoante o período do ano. As outras quintas, na sua maior parte, eram entregues, através de contratos de arrendamento, aos caseiros. Estes, em regra, constituíam famílias numerosas, com muitos filhos, para que trabalhassem na lavoura. Muitos, dos que por aqui tomavam conta dessas quintas, eram provenientes de concelhos menos industrializados, em especial, dos mais a leste, como Ribeira de Pena, Amares, Fafe, Celorico, Cabeceiras e Mondim de Basto, entre outros. Após estabilizarem a sua vida, tentavam arranjar emprego nas fábricas têxteis e deixar a agricultura, dando, por sua vez, lugar a outra família de arrendatários da sua família ou aldeia natal.

Família de caseiros com as senhorias em Santo Tirso. “Foto Studio – Amadores – S.º Tirso”. Retirada de www.delcampe.net

Em regra, os contratos definiam-se por um conjunto de obrigações exíguas que o caseiro tinha de cumprir. Os pagamentos eram feitos anualmente, através dos bens produzidos, com o milho, o centeio e feijão a serem pagos através de um número de rasas e/ou carros de bois previamente estipulado que, segundo os contratos, beneficiavam largamente o proprietário. Às vezes, os próprios caseiros, com a ânsia de entrar para uma determinada quinta, competiam entre si, oferecendo mais um carro de milho ao patrão e assim poderem entrar para a quinta. Quando as colheitas corriam mal, o arrendatário adiava o pagamento dos cereais em falta para o ano seguinte. Os caseiros que conseguiam contratos com patrões que lhes entregavam a produção a meias, eram considerados pelos seus pares como privilegiados. Se os patrões morassem longe, melhor ainda dado que não se intrometiam na gestão do quotidiano agrícola.   

Além dos cereais, havia o rendimento proveniente do vinho, o bem que mais facilmente proporcionava uma receita monetária. Logo de antemão, estava estipulado que o caseiro só ficava com ¼ da produção e o senhorio com ¾. Conforme o contrato estipulado, tinham ainda que fornecer, por exemplo, estrumes para os campos do senhorio, manter um animal e fornecer serviços braçais ou de tração animal.   

 Apesar da disseminação dos ideais da Revolução Francesa, com a publicação da primeira Constituição Portuguesa, em 1822, pelo Vale do Ave, muitas das casas mais abastadas mantiveram costumes quase-medievais até aos anos 80 ou 90 do século XX e que muitos de nós ainda conhecemos: os jornaleiros e criados, que viviam na casa, e que nunca comiam à mesa com os patrões e que, em muitos casos, nem partilhavam a mesma comida; o uso corrente do “Vossemecê”, abreviatura do “à Vossa mercê”, um trato comum para com os de condição superior; o facto de os filhos dos patrões, mesmo já adultos, serem subservientemente tratados por “Menino” ou “Menina”; o trato da patroa era o de “Dona” ou “Minha Senhora” e o do patrão de “Senhor”. Este último trato era dito por extenso, ao contrário do mesmo termo dito de forma abreviada, o “se”, e que era utilizado para as pessoas de baixa condição, como o “se Manel” ou a “se Maria”.

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