Nos arquivos do antigo Jornal das Aves encontramos exemplares “visados” pelo lápis dos serviços de censura do Estado Novo que curiosamente, apesar do controlo, chegavam inalterados às mãos dos leitores.
A palavra censura renasceu. No vocabulário das guerras culturais travadas online, na maioria dos casos com despropositado afinco, “censura” passou a ser expressão comum atirada de lado para lado e desprovida do seu negro significado. E se o termo atravessa a história da humanidade transversalmente, sob várias formas e designações, é natural que em pleno século XXI resista, mas não do modo corriqueiro com que tem chegado novamente ao grande público.
Na era da ditadura do algoritmo, o Entre Margens entrou na máquina do tempo e recuou à década de 50 para mergulhar nos arquivos do velhinho Jornal das Aves e descobrir edições visadas pela máquina da Censura Prévia e as notícias riscadas pelo lápis vermelho dos censores da Comissão do Porto.
Ao contrário do que sucedia com os livros, que sendo visados eram retirados à posteriori, jornais e publicações periódicas passavam pelo mecanismo de censura prévia. Cada edição era enviada aos inspetores para ser passada a pente fino, sendo devolvida à redação com os cortes e notas deixadas pelos censores.
E é neste processo que encontramos um dos fatores mais curiosos. Nas várias edições do Jornal das Aves com artigos cortados e assinalados pela Censura, apercebemo-nos que acabavam por sair totalmente inalterados. Ou seja, o jornal era impresso, eram enviados os exemplares para a censura ao mesmo tempo que começava a ser distribuído pelos assinantes. Assim sendo, quando os exemplares visados regressavam, já não havia nada a fazer: o jornal já estava na rua.
Isto acontecia no Jornal das Aves, como podemos verificar comparando o arquivo que faz parte do espólio do Entre Margens com o acervo da biblioteca do Centro Cultural de Vila das Aves, mas também no Jornal de Santo Thyrso como confirmou um antigo jornalista do periódico antes do 25 de Abril. No entanto, seria naturalmente um processo totalmente diferente no caso dos órgãos de comunicação social de maior tiragem e de âmbito nacional.
Os riscos do lápis da Censura
O primeiro artigo que encontramos riscado a lápis vermelho pelos inspetores da Comissão do Porto dos Serviços de Censura surge a 4 de junho de 1955. Intitulada “Panorama Internacional”, escrita por L.C., a peça discorre sobre as eleições em Inglaterra que deram uma confortável vitória ao Partido Conservador, servindo de ponto de partida para atacar o “capricho” da greve dos ferroviários.
Aliás, o texto “lamenta” mesmo que o “incompreensível direito à greve se mantenha ainda em países que pela sua experiência própria há muito já deviam ter conhecimento de como ele é criminosamente utilizado”. Não é, no entanto, este trecho o visado pelo lápis dos censores. Tal ficou reservado para uma breve passagem onde se descrevia a “triste figura do General Péron”, da Argentina, a lidar com os “ataques à Igreja Católica”.
A política internacional era claramente um dos pontos de enfoque nos inspetores da Censura e em 28 de abril de 1956, encontramos um artigo que sofreu um corte total. Assinado por Marques de Almeida, sob o título “Carta para o Mundo”, o texto inicia com a observação de uma frase pintada num muro na cidade do Porto (“O Militarismo é o porta-voz da guerra”) levando o autor desconstruir os conceitos por trás de tal afirmação.
“Acreditar que a paz dos povos se há-de conseguir, um dia, pela força bruta das armas, tão indigna da nossa civilização, é, na minha sincera e modesta opinião, a mais pura das utopias. É uma verdade irrefutável, que qualquer força gera outra força mais potente”, pode ler-se. Uma posição totalmente oposta aos desígnios do regime do Estado Novo.
Se a política internacional era um alvo apetecível, o que dizer da política local. Encontramos dois exemplos que não passaram aos olhos dos censores. Na edição de 3 de setembro de 1955, um artigo assinado sob o pseudónimo “Um dos Dez” coloca em evidência a frágil relação entre Vila das Aves e a sede de concelho, Santo Tirso. Poucos meses depois da elevação a vila, o autor realça o ambiente de “descontentamento” apelando mesmo à criação de uma comissão pró-Aves. “Pensar que estamos narcotizados com o título de vila, é um engano. Deem-nos aquilo a que temos direito”, podia ler-se.
Já em 29 de setembro de 1956, os censores cortaram um texto que alertava para o estado das escolas. Apesar de elogiar a “grande afluência” de crianças, o autor não identificado do texto critica as limitações em termos do número de alunos por professor e as condições físicas das escolas da freguesia.
“Repare-se na escola da Ponte, no estado daquele «coberto» e digam-me senão teriam medo de estar debaixo dele! E sob o aspecto educativo cremos mesmo que tal estado de conservação é contraproducente ao que se pretende incutir no espírito dos alunos. É, pois, sem favor que se impõe a construção das novas escolas. E ficamos à espera de que seja neste ano lectivo”, sublinhava.
Nem o futebol escapou ao lápis da censura. Numa passagem caricata de uma crónica ao encontro entre o Aves e o Rio Ave, os inspetores riscaram uma referência ao trabalho do árbitro do encontro.
“Do árbitro… apenas queremos publicar o seu nome para interesse das casas comerciais que ele visita, pois, como árbitro não merece ser conhecido. Chama-se… Oliveira Bastos!”, aponta o texto.
Deixamos para o fim dois exemplos quase antagónicos do trabalho dos Serviços de Censura. Primeiro, a 20 de outubro de 1956, Alfredo Queirós assinava um texto intitulado “O Salário” que acabou totalmente cortado pelos inspetores.
Nele, o autor aventura-se num ensaio sobre a questão salarial, especificamente sobre o aparecimento do abono de família e a ideia de que o salário de um trabalhador não o sustenta apenas a si, mas a toda a sua família.
Para tal, Alfredo Queirós, diferenciava os conceitos de salário individual e familiar, sublinhando que o salário legal, estabelecido a partir de acordos entre patrões e sindicatos controlados superiormente pelo Instituto Nacional do Trabalho, deveria ter uma abrangência mais vasta. Tal seria resolvido, “quase por completo”, pela introdução do abono de família, que segundo o autor deveria ser visto como parte do “salário e não como subsídio de subsistência”.
“Em suma: temos salário individual e abono; quando beneficiarmos do subsídio do lar, poderemos considerar o salário legal como bastante aceitável e que a nossa legislação está na vanguarda do progresso social”, conclui. O artigo acabou por ser cortado na totalidade.
Contudo, talvez o mais curioso dos artigos visados pela censura no Jornal das Aves seja o “Plágio Indecoroso” assinado por Artur Tojal a 18 de janeiro de 1958. Nele, o autor pretende acusar a poeta Maria Luiza Vieira da Costa de ter plagiado o trabalho do poeta brasileiro António Cândido Gonçalves Crespo na obra “Agenda do Mar”.
O problema está no modo como o autor do artigo decidiu fazê-lo. Artur Tojal começa por citar o adágio que diz que “numa mulher nem com uma flor se deve bater-lhe” para passar a relatar a sua experiência a lidar com os “ímpetos de histerismo” da mulher com quem fora casado (e mais tarde divorciado) para atacar a poeta pelo plágio “indecoroso”.
“Só tenho pena de não saber se ela é casada, pois todo o meu prazer seria ceder a seu marido aquele cavalo marinho que ainda possuo como relíquia de museu e tanta vez utilizei para dominar os ímpetos histéricos duma mulher com quem também já fui casado.
Esse receituário talvez suscite mais eficaz efeito do que esta flor de retórica com que a brindo”, pode ler-se.
A este texto os censores fizeram uma edição construtiva, assinalando os parágrafos onde o autor desfere ataques de índole pessoal à poeta e à sua editora, funcionando quase como consciência ética que o autor não teve.