Logo agora que, finalmente, me tinha prometido abrandar, por uma irónica chalaça da vida, o coração, antes mesmo de a razão lhe conseguir gaguejar um “tem lá calma”, já tinha proclamado um desarrazoado e insofreável sim. Um sim que me comprometeu a integrar o bando de loucos que decidiram enfrentar o mais catártico, temerário e árduo “dérbi” das suas vidas.
A caminho de pôr o “preto no branco”, o coração, tentando como sempre ensinar à razão as razões que ela própria desconhece, desenterrou das brumas da memória uma longínqua viagem em que um jovenzito eufórico se dividia, fascinado entre a vista da majestosa serra do Marão que, soberba, se desfilava ali mesmo à sua frente ao vivo e a cores, e os seus ídolos que, como simples mortais, cabeceavam entediados ao seu lado. Lá à frente, o seu pai, sorria feliz do seu inocente encantamento. Encarriladas na estreita tira de alcatrão entalada entre encostas imensas que riscavam o céu, três carrinhas, de credo na boca, lá iam serpenteando entre arrepiantes despenhadeiros, sacolejando os pobres viageiros até ao enjoo. Mais moídos que o chapéu de um pobre, dobraram finalmente o Marão e, mal Bragança se esboçou contra as encostas da serra de Montesinho, um nervoso miudinho abateu-se, pesado como chumbo, sobre a comitiva.
Naqueles idos de 1977, autocarros para deslocação de equipas desportivas eram luxos muito raros, apenas ao alcance dos grandes e, por isso, as deslocações do Desportivo das Aves faziam-se em carros ou carrinhas emprestadas e conduzidas por amigos do Clube. Também eram os amigos que pagavam ou comparticipavam nas despesas de combustível, alimentação e alojamento. Já os jogadores, esses, eram principescamente pagos com amor à camisola. Por um belíssimo acaso, sobrou um lugar na carrinha que o meu pai conduziria e eu fui o felicíssimo contemplado para viajar com craques como o Pinheiro, o Raúl, o Lavadores, o Tónio Valente e outros que, infelizmente, não recordo.
Ganhando aquele jogo em Bragança, o Aves seria o campeão da terceira divisão, logo nessa jornada. O Bragança, que também era candidato ao título, agraciou-nos com uma impressionante comissão de “más-vindas” que, num perfeito dialeto de carroceiro nortenho, se empenhou afincadamente a cobrir-nos de “mimos”, desde os arredores de Bragança até aquilo que eles diziam ser um campo de futebol, mas que, nem com muito boa vontade se podia classificar como horta.
“O nosso clube é o mais dileto filho desta terra e cabe-nos o dever de o cuidarmos como a nossa mais preciosa joia”
Naquele jogo, o Aves foi flagelado sem piedade com a peste do vale tudo, da violência, da batota e da deslealdade, que há demasiado tempo vem infetando o futebol com tal gravidade, que muitos acham já que não tem cura e outros tantos entendem que o Futebol é isto. Com um cínico descaro, o banco dos suplentes do Aves foi plantado a pouco mais de meio metro do gangue adversário, e este, num selvagem regabofe, cuspiu-os, insultou-os e ameaçou-os constantemente durante os intermináveis noventa minutos, derrubando amiúde, a fortes patadas, o dito banco e os seus ocupantes. O futebol praticado por eles era do tipo americano e do mais sarrafeiro. Mal o arbitro teve a ideia peregrina de marcar uma falta próxima da grande área adversária, enfardou uma tal carga de porrada, que nunca mais marcou o que quer que fosse no meio-campo adversário. Quando o Pinheiro lhe pediu explicações, este retorquiu-lhe apenas que queria voltar a ver a família. Misteriosamente, os pneus de uma das carrinhas apareceram cortados.
Para meu imenso orgulho e vaidade, os craques do Aves, mesmo a arder naquele pedaço de inferno, nunca se aviltaram a responder da mesma moeda, mostrando-lhes, bem ao contrário, a maior garra, resiliência e espírito de grupo, que estes alguma vez tinham visto. Naquele jogo épico, sagraram-se campeões e cobriram-se de glória, apesar de, se bem me lembro, o adversário ter marcado três ou quatro golos e o Aves nenhum.
É por isso que, por mais que a razão proteste, no momento mais difícil dos provectos 92 anos do Clube Desportivo das Aves, jamais poderia alijar a responsabilidade de tentar continuar a honrar os feitos destes e de muitos outros campeões, da labuta de tantos e tantos dirigentes, e da preciosa ajuda de tantos amigos e colaboradores. Por todas as alegrias e sorrisos que proporcionou ao meu pai e aos pais de tantos outros adeptos, por todas as alegrias que me proporcionou a mim e a toda a minha geração, mas principalmente pela alegrias e sorrisos que ele tem de continuar a proporcionar aos nossos filhos e aos filhos deles, não poderia ter deixado de responder sim ao convite para integrar a nova direção do Clube Desportivo das Aves.
Esta direção lutará até cair para que o nosso Aves continue a ser, por muitos e bons anos, a casa mágica onde as nossas crianças semeiam os seus sonhos de glória e, acima de tudo, uma escola que forme seres humanos de excelência. Terá, indiscutivelmente, de ter e de incutir a ambição de se ganhar todos os jogos deste mundo e do outro, mas a missão que verdadeiramente não pode falhar é a de fazer do Aves um campeão da ética desportiva, da honestidade e das contas à moda do Porto. Não podendo sustar a peste que infeta o futebol, terá de ser, pelo menos, e mais do que nunca, um combatente contra a violência, a batota e a deslealdade. Na nossa casa, nenhuma criança poderá chorar de medo, nenhuma família poderá ser apedrejada e nenhum ser humano e muito menos uma criança será ultrajada.
É indiscutível que o nosso Clube é o mais dileto filho desta terra entre os Aves plantada e, por isso, cabe-nos nesta hora especialmente difícil, o dever de o cuidarmos como a nossa mais preciosa joia. Não tenho qualquer dúvida que os avenses abraçarão connosco este seu filho ferido, para garantir que o legaremos ao futuro, mais glorioso, mais forte e mais sustentável.
O que verdadeiramente nos definirá, não será a queda, mas a forma como nos levantaremos dela. Viva o Aves.