“Ai Senhor das Furnas, que escuro vai dentro de nós”! Assim começa a música de Rui Veloso com letra de Carlos Tê que há quarenta anos refletia de modo singular sobre o peso da iliteracia dos portugueses. Mais do que os “anéis de rubi”, esta é de facto uma das grandes músicas do legado desta dupla. Infelizmente, e por muito ridículo que pareça, continua atual.
Há dias, ouvi num podcast uma entrevista ao José Pacheco, antigo diretor da Escola da Ponte, em que este afirmava que quando chegou à Vila das Aves nos anos setenta, alguém lhe atribuiu a turma do “lixo”. Se nos recordarmos bem, este tipo de terminologias eram correntes e demonstravam muito do desdém no trato para com as crianças. Hoje muito mudou. Contudo, nem todos esses meninos, pelos quais José Pacheco se empenhou na sua vida, tiveram professores como ele e conseguiram realizar os seus sonhos de chegar a artistas ou guarda-redes da seleção, conforme o mesmo relata na sua entrevista.
Ao ouvir estas histórias recordei logo um amigo de infância que nunca saiu das armadilhas dos problemas psíquicos e do baixo contexto socioeconómico em que nasceu. Pior do que estes seus “pecados originais” foi um delito que se viu obrigado a cometer: ter ido para a escola aos seis anos de idade. Das 8h30m às 10h15m era-lhe colocado um problema para resolver no quadro. E aí ficava, na eternidade das quase duas horas a olhar para os outros que tinham direito a uma aula que ele não entendia. Chegado momento do intervalo era-lhe questionado se tinha resolvido a questão matemática. Perante o riso e o olhar de todos, assumia sempre que não. Dois puxões de orelhas ou uma canada na cabeça e, com sorte, ainda podia ir ao intervalo. O resto do dia? A mesma coisa. De vez em quando fugia e não aparecia. Nesses dias restava-lhe ainda uma boa sova quando chegava a casa. A cada trimestre, chegado o último dia, era vê-lo a ir para a escola de meias por fora das calças, para correr melhor, pronto a fazer aquilo que todos gostavam: à pedrada, escondido por entre os silvados, varria os carros dos professores.
“Pior do que estes seus pecados originais foi um delito que se viu obrigado a cometer: ter ido à escola aos seis anos de idade”
Napoleão Ribeiro
Seria justo? Claro que era! Hoje dói, mas aos olhos daquele tempo não doía. Tratava-se do tempo da literacia da crueldade. Aprender com violência era o dado. É óbvio que só muito excecionalmente é que o meu amigo teria conseguido sair das armadilhas da sua existência. Infelizmente ainda não saiu.
Na realidade, muitos de nós também fomos esses meninos. Apesar dos índices de escolaridade dos últimos anos terem subido para níveis aceitáveis, segundo o estudo “Retrato de Portugal na Europa 2019” da Pordata, a base de dados estatísticos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, publicado em outubro desse ano, no nosso país 49% dos patrões não possui mais do que o nono ano de escolaridade, a pior taxa da União Europeia, cuja média é de 16,6%. O mesmo sucede com os empregados, dado que 42% também não passa dessa meta escolar, situação que nos coloca também na cauda da União Europeia em que a média é de 16,5%.
Segundo os especialistas, a maior consequência direta deste problema é o facto de não conseguirmos elevar os índices de produção. É a iliteracia da produtividade.
E do resto? Entender mal, soletrar, assinar em cruz, a gente morre logo ao nascer com olhos rasos de lezíria, de boca em boca passando o saber com os provérbios que ficam na gíria…