Com o disco “Picos e Vales” acabadinho de ver a luz do dia, Márcia passou pelo Sonoridades em registo intimista e confessional, onde apenas a guitarra e os cravos da Revolução foram companheiros de palco. Casa cheia para fechar com chave de ouro a edição 2022 do festival por onde passaram PZ, Homem em Catarse e S. Pedro.
Um fim de tarde de primeiras vezes. No palco, ao centro, apenas uma cadeira. Em seu torno, as suas amigas, três guitarras que se foram revezando ao longo do concerto e o adereço principal de qualquer 25 Abril: cravos vermelhos a vestir o cenário de Revolução e Liberdade.
Márcia passou pelo Centro Cultural Municipal de Vila das Aves como chave de ouro a encerrar a edição 2022 do Sonoridades. Com casa cheia à sua espera, no fim de semana que marcou o final da obrigatoriedade das máscaras, a cantautora embrenhou-se num concerto onde foi buscar as pérolas à sua discografia e desvendou ao público avense temas do novo trabalho “Picos e Vales”. No entanto, foi mesmo no encerramento que tirou da cartola o derradeiro truque de magia: a versão de “A Presença das Formigas” de Zeca Afonso, “a capella”, de cravo em punho.
Acabaste por terminar o concerto com uma versão do Zeca Afonso. Foi importante para ti fazê-lo num dia como este?
É sempre um dia importante e cada vez mais temos que nos lembrar disso. Não seria bom encher um contentor de cravos e mandarmos para os soldados russos? É assim que explico o 25 de Abril aos meus filhos: que um dia resolveram pôr cravos nas armas e dizer não luto mais. É preciso sabermos desobedecer quando faz sentido. Estamos a educar para a obediência e subserviência, mas esquecemo-nos do pensamento crítico.
Com o novo álbum “Picos e Vales” na bagagem, que Márcia é esta que se apresenta agora ao quinto álbum de originais?
Penso que é uma Márcia mais completa e mais humilde perante tudo o que acontece na vida. Sinto que acertei no nome do disco, porque a vida é mesmo feita de altos e baixos. Tudo o que acontece é compensado. Temos que saber processá-la. Este disco é um processamento. Uma digestão e uma integração daquilo que sentimos para não estarmos constantemente a fugir daquilo que somos, daquilo que sentimos ou dos outros. Por isso, acho que sou uma Márcia cada vez com menos medo.
“Este disco é um processamento. A integração daquilo que sentimos para não estarmos constantemente a fugir daquilo que somos”
Márcia
Pela primeira vez assumiste a produção do disco na íntegra. Que desafio foi este de passar para esse lado da cadeira?
É engraçado que, por ter feito aqui a música do Zeca Afonso, lembrei-me um pouco desse processo. Estava de férias em Almeida e veio-me à cabeça um baixo de decidi gravar com a minha voz para não me esquecer. Depois quando ouvi aquilo, pensei bem e decidi não gravar o baixo e usar as vozes como instrumento. Quando em 2019 fui à Presidência da República no 25 de Abril e cantei essa música a minha road manager perguntou-me onde estava a guitarra e eu tirei do bolso uma pen onde tinha gravado as faixas das vozes. (risos)
Todo esse processo espoletou em mim essa ideia de produzir. As pessoas podem não saber o isso significa, mas no fundo é tomar decisões sobre como são gravadas as músicas, que opções tomas para cada canção ou que músicos queres para acompanhar. Quando veio a pandemia fui um bocado empurrada para essa solitude de estar a fazer aquilo no computador, sozinha. Acabei por usar muito mais o computador do que a guitarra porque estava a curtir a cena de pôr vozes em cima de vozes como se fosse um instrumento, tal como quando tinha feito nessa versão do Zeca.
Isso deu-te mais liberdade, mas também mais responsabilidade sobre aquilo que estavas a criar?
Quando tens liberdade, tens responsabilidade. Na verdade é que sempre produzi os meus discos, só não o tinha feito sozinha. Tinha-o feito sempre com outros músicos com quem aprendi muito e a maioria deles acaba por entrar neste disco como convidados. Essa é também a beleza de produzires um disco.
Isso nota-se também na sonoridade de algumas das canções novas que trouxeste hoje.
Eu acho que o disco tem alguns momentos diferentes com os coros quase eletrónicos em que eu própria uso os synchs, mas depois tem momentos como o “Esse Mundo Teu” à guitarra e voz, momentos acústicos ou momentos quase orquestrais como também já usei antes.
Já tens andado na estrada, há aqui todo um ímpeto para o lançamento do novo álbum. Como é que te tens sentido neste regresso aos concertos pós-pandémicos?
Honestamente, voltar à estrada com os rapazes para mim é um alívio. Divertimo-nos imenso, sabemos o que estamos a fazer, eu estou com uma rede enorme à minha volta. Eles tocam e eu só me divirto. É outro tipo de concerto, sobretudo agora que já o rodamos um bocadinho e já estamos só naquele momento de diversão. A solo é sempre um concerto onde sinto que consigo desabafar pouco mais. É como uma festa ou um tête-à-tête. Tudo faz parte da vida.
Começamos a tour a 12 de fevereiro em Vila Real e foi o primeiro concerto em que permitiram que as pessoas pudessem vir cumprimentar-nos no final. Uma lufada de ar fresco, como se já estivesses a viver outra vez depois de termos estado numa espécie de não-vida.
“Não seria bom encher um contentor de cravos e mandarmos para os soldados russos?”
Márcia
Acredito que, por esse lado confessional que as pessoas reconhecem em ti e nas tuas músicas, também precises deste contacto mais íntimo com o público.
Sim, porque mesmo que exista espaço para isso quando estou a tocar em banda, são de facto energias diferentes. Assim, como estávamos hoje, sou um bocadinho mais mimada, no sentido em que o público me está a abraçar um bocadinho mais, está comigo e a torcer por mim.
Sentiste-te abraçada hoje?
Senti, sim. Muito acarinhada mesmo. As pessoas foram muito generosas e simpáticas, mesmo quando deixei cair algumas coisas ao chão. (risos)