[Opinião] Espetáculo do vazio

ATUALIDADE João Ferreira

No presente ano, ganhou notoriedade um conceito com nome sugestivo: «brain rot». Descreve uma era digital em que a mente não se apaga — apodrece. Tal termo descreve o declínio mental e cognitivo percebido como resultante do consumo excessivo de conteúdo trivial e de baixa qualidade na internet, particularmente nas redes sociais. Não é senão a forma contemporânea da alienação: um espetáculo do vazio, onde o tempo, a atenção e até os afetos são mercadorias extraídas do corpo vencido pela fadiga. Em cada scroll, cada like, além de espetadores, tornamo-nos produtores não remunerados do nosso próprio entorpecimento, produzindo dados e lucro a uma mão cheia de grandes empresas.

Mas a genialidade perversa deste mecanismo é a sua capacidade de transcender o ecrã do telemóvel e absorver toda a esfera mediática, desde os media “tradicionais” à esfera política. Observemos o circo mediático das últimas semanas. A direita— desde o PSD, à IL, ao Chega, passando pelo espectro de sombras que se alimenta de medos fabricados — entendeu que, para afastar qualquer alternativa e governar sem resistência efetiva, basta promover uma ilusão permanente de debate assente em temas inventados. As burcas, os cartazes do Bangladesh, os “três Salazares”, as alterações à lei da nacionalidade, as saídas dramáticas de estúdio. Uma estratégia meticulosamente orquestrada. Qual a motivação destas distrações? Como em qualquer crime, a resposta passa pela pergunta crucial, «cui prodest?» – a quem beneficiam? Enquanto nos entretemos a discutir problemas fantasmas, o grande capital e o seu braço político – do PSD ao Chega – levam a cabo um assalto histórico ao erário público e aos direitos dos trabalhadores.

Ora espreitemos por trás do pano de fundo do espetáculo. Enquanto se debate se uma mulher pode usar burca (em Portugal, onde tal prática é mais rara do que um membro honesto no Chega), o Estado perde mais de seis mil milhões de euros com a venda do Novo Banco — um roubo institucionalizado que beneficia a banca, e que permitiria quintuplicar o investimento previsto no orçamento em promoção de habitação pública. Enquanto se inventa uma crise de identidade nacional ameaçada pelo “imigrante”, consolida-se um programa de descida de impostos para os lucros do grande capital e para os senhorios, um presente pago com o aumento da receita com impostos indiretos sobre os trabalhadores e pensionistas através do IVA, especialmente em bens e serviços essenciais, cujos preços aumentam sem cessar.

E eis o objetivo final da distração: avança sem discussão o novo pacote laboral que é um manifesto de guerra social: um ataque em toda a linha à contratação coletiva, a facilitação dos despedimentos, expande-se o horário de trabalho com recurso a banco de horas, cerceia-se a parentalidade, prolonga-se a precariedade e insegurança dos trabalhadores, limita-se o direito à greve e a ação sindical.

O «brain rot» político da direita serve, assim, um duplo propósito: entorpece, fragmenta, impede a formação de consciência coletiva e ocupa o terreno da discussão pública com quimeras. A minoria que manda — aquela que se esconde atrás de PSD, CDS, IL, CH— sabe que um povo distraído não se revolta. Um povo ocupado a discutir absurdos não exige direitos. Enquanto a nossa mente apodrece com trivialidades, a direita atua, desregula, precariza e concentra riqueza. O capitalismo não quer trabalhadores pensantes; quer produtores e consumidores obedientes. Cabe-nos recusar esse papel — antes que o apodrecimento nos leve a alma inteira. Para tal só há um antídoto: organização, clareza e luta real.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

19 − five =