[Reportagem] “À Margem”: um festival em busca do ADN alternativo da vila

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Primeira edição do certame levou centenas de pessoas ao parque do Amieiro Galego com um cartaz recheado de pontos luminosos da cena independente e alternativa da música nacional. “Vila das Aves precisa de uma coisa assim”, dizem espectadores.

Eram 16 horas. No parque do Amieiro Galego sentia-se um misto entre a azáfama com os preparativos de última hora e o entusiasmo que só um evento completamente novo, pensado de raiz, consegue extrair de um conjunto de pessoas. Com o soundcheck nos dois palcos do recinto concluído, é na caravana que pontua o backstage que a equipa do festival “À Margem” se coloca a postos para receber os primeiros festivaleiros: pulseiras para as entradas, gelo nos bares, ponderar a possibilidade de chuva prevista mais para a noite, enfim, um sem fim de pequenas tarefas para que não fique nada por fazer.

Carlos Ferreira e João Pereira finalmente conseguem sentar-se por uns minutos para conversar com o Entre Margens, enquanto Caio se prepara para abrir as hostilidades em palco. São o rosto daquilo a que chamam um “devaneio”, que ganhou forma a partir de uma conversa de amigos e acabou conjurado neste primeiro fim de semana de setembro.

As festas à janela do IAI Coletivo deram o mote para um festival que usa a arquitetura como agregador cultural. “Utilizar arquitetura efémera aplicada a espaços urbanos que as pessoas por vezes não usam ou não dão o devido valor, usando a música como veículo para o conseguirmos”, explica Carlos Ferreira. “Queremos trazer as pessoas para a rua”.

O Amieiro Galego facilmente se mostrou como o cenário ideal para concretizar esta ambição. O belo parque nas margens do rio Ave traduz na comunidade avense o velho ditado “longe da vista, longe do coração”. É um tesouro escondido que passa ao lado do quotidiano da grande maioria para o qual o festival pode servir de porta de entrada. E o recinto pensado para o parque evidencia todas as suas potencialidades, entre a frescura das árvores e o cenário do rio.

Um festival, no entanto, não se faz só de arquitetura. A música é um componente fundamental. Mas que tipo de música? Que tipo de público se pretende atrair? João Pereira revela o segredo para o ecletismo de um cartaz onde se nota a sensibilidade de quem organiza.

“Um festival não é um concerto e a ideia passa por termos vários géneros a partilhar o palco no mesmo dia. Tentamos encaixá-los não encaixando”, revela. “Fugimos um bocadinho daquilo que é mainstream, porque para isso ligamos o rádio. Gostamos de ouvir coisas diferentes e hoje em dia com o streaming é mais fácil encontrar essas bandas”.

O dedo de curadoria é notório num cartaz que progride em intensidade ao longo do dia. Traça um caminho congruente entre bandas e estilos que à primeira vista nada têm em comum. Essa é a chave para qualquer festival. Como fazer sentido de peças do puzzle destoantes, criando sentidos e ligações surpreendentes para o público e para os próprios artistas. E nesse aspeto, o “À Margem” passou com distinção.

“Vila das Aves precisa de uma coisa assim”

Para erguer um evento desta envergadura, a dupla que se atirou a esta odisseia “sem saber como se fazem as coisas”, agregou em seu torno um grupo de treze elementos. Durante meses planearam cada detalhe, montaram o recinto praticamente com as próprias mãos, contactaram bandas e agentes, andaram a bater às portas do comércio local para angariar patrocínios. E apesar do conceito desafiante, quase “esotérico” da proposta, aquilo que ouviam do outro lado era o “agrado” pela ambição.

Sentimento que se transpôs do processo de organização para o público presente. Entre o punk selvagem dos Gonkallo, que arrasaram o palco mais térreo, e as guitarras atmosféricas do prog-rock dos Astrodome, no palco principal, a mensagem que se difundia pelos espectadores era unânime: “Vila das Aves precisa de uma coisa assim”.

E a coisa assim a que se referem não é um mero festival de música. É um evento que puxe por um sentido de identidade comunitário, que não apele apenas ao máximo denominador comum, mas sim que vá em busca do ADN alternativo que faz pulsar a comunidade. Foi isso que o “À Margem” se propôs fazer e o público disse presente.

Segundo Carlos Ferreira, em pré-venda o festival conseguiu vender 75% da lotação prevista de quinhentas pessoas, facto que superou largamente as expectativas da organização. Até porque, acrescenta João Pereira, para esta primeira edição o mais importante era fazer e mostrar que era possível, servindo de base para o futuro.

“Estamos a tirar da nossa vida pessoa e a entrega-la à comunidade. Claro que há satisfação pessoal, o sentimento de realização ao montar um evento destes é importante, mas isto é para a comunidade”, sublinha Carlos Ferreira. “As pessoas da vila merecem ter acesso a algo mais alternativo e não precisem de procurar sempre fora. Aliás, estamos a fazer o reverso da moeda. Trazer pessoas de fora para cá o que para nós também é muito satisfatório.

Às 16 horas, o festival ainda não tinha aberto oficialmente. Mas na cabeça dos responsáveis já se sonha com o que fazer a seguir. O grupo de trabalho vai “respirar” durante uma semana. E depois, está na hora de pensar no próximo ano.

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