[Crónica] Os nossos modos de vida

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Fico um bocado confuso sempre que alguém, a propósito da imigração, apela ao dever de respeito pelo “nosso modo de vida”. Fico confuso, porque geralmente encontro pouco ou nada de comum entre o “meu modo de vida” e o da pessoa que o profere, e porque isso parece dizer muito pouco sobre a nossa pertença a este lugar.

A democracia é precisamente, por essência, a negação da prescrição a todos de um determinado modo de vida. O Estado Novo, por oposição, queria impor pela força um “modo de vida”, e usava da censura e da violência para corrigir o que via como desvios. A democracia, pelo contrário, é um espaço de coexistência entre diferentes modos de vida.

O que se exige dos imigrantes, é o mesmo que se tem de exigir a todos os outros cidadãos, independentemente da origem: o respeito pela lei (e nenhum indicador nos diz que estes a respeitem menos). Por outras palavras, o cumprimento dos deveres, e igualmente o usufruto dos direitos (por vezes negligenciados por quem lhes exige deveres) da cidadania.

Dir-me-ão que, pelo mesmo prisma, os imigrantes também não nos podem impor um modo de vida. Certo, mas o que leva a crer que isso possa ser uma ameaça? Onde está a evidência que nos faz ter der recear isso?

Num país em que a poder da Igreja Católica ainda desafia, aqui e ali, o princípio de laicidade do Estado, como se viu durante as jornadas da juventude, e onde se vê na concordata, não há qualquer paralelo relativamente às novas culturas que vão emergindo no país.

É haver frango halal à venda das grandes superfícies? Pasmem-se, mas também podemos encontrar à venda uma parafernália de refrigerantes norte-americanos. É a “polémica” da cedência de terrenos para a construção de mesquitas? E quantos e quantas vezes isso aconteceu para a construção de igrejas? Quantos financiamento e intensivos fiscais o Estado dedica à religião Católica. O Estado é laico, e a laicidade não deve ser seletiva.

Além disso, há algum partido, com número significativo, que se proponha em operar uma mudança de modo de vida na população? Há um ou mais grupos que proponham essa alteração recorrendo a meios que ameaçam os procedimentos democráticos?

Há, mas não os encontramos entre os novos afluxos de imigrantes. Encontrámo-los na extrema-direita. É a extrema-direita que quer impor a todos uma conceção particular de modo de vida, com base numa perspetiva totalmente ficcional acerca da suposta “origem nacional”. Ficcional porque não há qualquer base quer biológica, quer histórica que a sustente.

Os povos são dinâmicos, heterogéneos e dinâmicos. As culturas são porosas.

A extrema-direita é a negação de tudo isso. Nesse sentido é, ironicamente, também a negação da Pátria.

Porque um país democrático é a confluência harmoniosa de diversos modos de vida.

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