[Opinião] Artigo (e mundo) em construção

Ana Isabel Silva CRÓNICAS/OPINIÃO

Na minha vida profissional, nunca gostei quando líderes respondiam a um problema com: “não sei o que te dizer”. Mas hoje escrevo este artigo dizendo precisamente isso. O dia de reflexão é o dia anterior às eleições, mas para mim tem sido depois.

A esquerda teve dos piores resultados da história e isso exige uma reflexão profunda, na verdade há muito devida. É evidente que o contexto internacional tem um impacto enorme — estamos a assistir a uma reorganização em quase todos os países. Mas, sendo isso verdade, não pode justificar tudo. Externalizar completamente a causa dos maus resultados tem sido um erro repetido demasiadas vezes. É certo que a esquerda precisa de comunicar melhor. E isso passará inevitavelmente por novos protagonistas. Mas, neste momento, é ainda mais urgente discutir o que queremos comunicar.

A renovação de protagonistas não pode ser apenas uma troca de rostos — isso seria o nosso fim. Precisamos de escolher quem consiga representar um projeto com esperança e futuro, e que represente pessoas reais. Protagonistas que sejam interlocutores de organizações que representem verdadeiramente setores e lutas.

O crescimento brutal da direita e da extrema-direita garante agora os dois terços necessários para alterar a Constituição. E que ninguém tenha dúvidas: é exatamente isso que vai acontecer.

Saio de Portugal com um sentimento agridoce. Do outro lado do oceano, isto tudo já aconteceu há mais tempo, por isso as consequências são mais visíveis. O silenciamento, que já não afeta apenas algumas comunidades, mas toda a gente, os cortes nos serviços públicos, na ciência e no conhecimento, trarão consequências das quais dificilmente recuperaremos. Entendo o argumento de que é necessário estas forças chegarem ao poder para que as pessoas percebam que não resolverão os seus problemas. Mas a destruição que provocarão pelo caminho será imensa e, em muitos casos, irreversível.

Para além das consequências sociais, preocupa-me também o impacto mais individual e na forma como nos organizamos. O medo e a repressão transformar-se-ão em apatia e silêncio. Perguntei a uma amiga como sobreviveu a quatro anos de Bolsonaro no Brasil. A resposta foi a que mais temia: “falar menos.”

Foi criada a ideia de que a culpa da nossa falta de qualidade de vida é de quem tem menos do que nós. De que antigamente é que as coisas estavam bem, e é para lá que temos de voltar. De que a solidariedade e a empatia são culpadas pelo agravamento das nossas vidas.

Vamos ter eleições presidenciais no início do próximo ano. A guerra e a nova organização mundial que se desenha assustam-nos a todos. E isso terá uma consequência: escolher com medo, o que raramente é bom conselheiro. Corremos o risco de eleger uma presidência que, além de ver a guerra como inevitável e nos conduzir até ela, tem como prioridade a estabilidade. Mas não se trata da estabilidade das nossas vidas — de conseguir chegar ao fim do mês, de ter estabilidade financeira, habitação ou escolas. É a estabilidade de quem acha que discutir diferentes soluções para os nossos problemas é uma chatice de que podemos prescindir.

Neste momento, em vários pontos do mundo, os imigrantes não só perderam a voz como correm riscos ao falar. O que vos peço aqui é: nunca se deixem calar. Nunca se deixem silenciar. Haverá momentos de derrota como este, mas o futuro é longínquo — nunca termina. E, por mais pequenos que nos sintamos, lutemos pela sociedade em que acreditamos. Mesmo nas coisas mais pequenas, nos detalhes da nossa rotina. Façam-no por vocês e por quem não o pode fazer.

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