Homenagem aos resistentes antifascistas de Santo Tirso preencheu o Centro de Artes de histórias e testemunhos de presos políticos. Diretor da Torre do Tombo explica como a fábrica era, ao mesmo tempo, um local de perpetuação do autoritarismo e resistência.
Não existe uma só definição de resistente antifascista. E se em Portugal o regime ditatorial perdurou durante 48 anos, tal também significa que a luta antifascista existiu pelo mesmo exato período de tempo: das ações mais simples do dia a dia, às grandes iniciativas de protesto. Neste movimento cabem todos. Todos aqueles que não se vergaram.
Em homenagem a estas vidas, a União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), organizou uma sessão em Santo Tirso, no Centro de Artes Alberto Carneiro, antiga Fábrica do Teles, contando com testemunhos de familiares de presos políticos e histórias de oposição numa região marcada pelo peso indomável da indústria têxtil.
E se a fábrica era, pelo seu próprio ADN, um local de perpetuação das estruturas autoritárias do regime, foi também espaço onde floresceram atos de resistência e luta, fosse esta individual ou coletiva.
Silvestre Lacerda foi até ao passado dia 31 de janeiro diretor do arquivo nacional da Torre do Tombo. Está desde essa altura, aposentado. De passagem por Santo Tirso trouxe consigo alguns exemplos dos registos de cidadãos que foram presos durante o Estado Novo na região.
“Tenho encontrado que uma parte significativa dos presos políticos são efetivamente trabalhadores”, revela, em conversa com o Entre Margens, distinguindo vários momentos de repressão ao longo dos tempos. “Na sequência da guerra civil espanhola, há um momento importante da repressão em Portugal. Já na sequência da normalização do regime, a seguir à segunda guerra, nos anos 50, há uma nova vaga de repressão e, claro, com a guerra colonial as coisas voltam a ser mais apertadas”.
Silvestre Lacerda alerta para conceções erradas ao explorar os arquivos. Aquilo que comummente são conhecidos as “fichas da PIDE” vão muito além do número encarceramentos presentes no Registo Nacional de Presos. Por uma razão muito simples, envolve um universo muito mais abrangente de atividades ilícitas, reprimendas, castigos e observações.
Mais, é preciso ter atenção ao que é dito nos relatórios. Podem não corresponder à realidade dos factos, mas sim ao interesse, desconhecimento ou negligência por parte da polícia. Daí que seja fundamental confrontá-los.
“Este é o aspeto que me leva sempre a dizer que as fontes devem ser lidas com muita atenção”, sublinha. “Às vezes temos a ideia de que a história oral é mais complicada, mas quando lemos este tipo de documentos, por serem escritos e oficiais, quase que nos esquecemos que não são inócuos. As fontes, não é por serem escritas, que se tornam mais credíveis. O trabalho do historiador é precisamente esse”.
Ao apresentar publicamente os registos de cadastro de vários presos, ao longo das décadas de Estado Novo, em Santo Tirso e na região, Silvestre Lacerda conseguiu retirar várias conclusões específicas.
“Umas das questões mais interessantes é o ludismo”, aponta, sobre a prática que se notabilizou em Inglaterra, aquando da Revolução Industrial, pela destruição ou sabotagem de máquinas como forma de protesto por parte dos trabalhadores. “Há poucos exemplos conhecidos de ludismo em Portugal, mas aqui em Santo Tirso e no Vale do Ave encontramos vários”.
Este aspeto coloca o espaço fábrica no centro do combate ao fascismo, extravasando a questão sindical, de união dos trabalhadores em luta pelos seus direitos e por melhores condições, descendo a um nível de ação mais individual do trabalhador. Uma luta mais discreta, mas muitas vezes eficaz. Os registos demonstram a prisão de vários trabalhadores sob este desígnio.
João Ferreira, deputado municipal do PCP, lembra três momentos icónicos da luta antifascista em território tirsense: a greve de 1967, precisamente na Fábrica do Teles, no espaço que agora acolhe esta sessão; a marcha dos trabalhadores da Rio Vizela, em 1969, em direção à Câmara, para exigir pão; e o comício da oposição democrática que encheu o cineteatro da cidade, em 1973.
Comício cuja realização deixou Santo Tirso em verdadeiro estado de sítio, repleta de agentes da PIDE e da Legião a cercar um cineteatro completamente preenchido. Organizado por um grupo jovens universitários, o momento marcante deu origem a um movimento que nunca mais parou e de onde saiu o primeiro presidente da Comissão Administrativa da Câmara: Manuel Neto.
São histórias que importam preservar. Sejam os testemunhos Abel Rodrigues e Maria Augusta Carvalho, sobre os pais que foram presos pelo PIDE, ou as memórias de professores e vizinhos que, à sua maneira, desafiavam o regime.