[Crónica] Os Miseráveis

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

De onde advém a legitimidade do Estado? É na tentativa de resposta a esta questão que se encontra o busílis da construção das sociedades modernas. À arbitrariedade hierárquica e moralmente estratificada do antigo regime, surgiu um movimento intelectual contrário, com a defesa de uma fundamentação racional para a política. Este teve a sua expressão prática na Revolução Francesa, da qual somos herdeiros institucionais.

A tese principal expressa-se por uma metáfora, a do “contrato social”. Embora os vários teóricos contratualistas divirjam entre si em aspetos não negligenciáveis, têm como denominador comum o seguinte: Vamos imaginar como seria o mundo pré-institucional, ou seja, o mundo sem sociedade civil, nem lei, nem Estado. Nesse cenário, designado por Estado da Natureza, estaria cada um por si. Cada qual estaria entregue apenas a si próprio para se proteger e impor a justiça perante os outros. Nestas circunstâncias, torna-se evidente (segundo os autores) o interesse racional de todos em prescindirem do direito de fazer justiça pelas próprias mãos e entregarem-no a uma entidade, que em representação de todos, o garanta a sua proteção efetiva e a aplicação imparcial da justiça. Assim nasceria o Estado, a partir de um contrato “assinado” pelas partes, no qual entregam ao coletivo, sob a forma do Estado, o monopólio da violência em troca da sua proteção. Quando cessa este contrato? Sempre que uma das partes entrar em incumprimento. Assim, quando o Estado deixa de proteger uma das partes, e ao invés atenta contra ela sem que esta tenha cometido qualquer delito para o justificar, a validade do contrato para essa pessoa cessa.

Após os incidentes do bairro do Zambujal, faz todo o sentido revisitar o ideal do contrato social. Devemos perguntar para quem o contrato social é válido e quem dele se encontra excluído, devemos refletir se de facto as pessoas que vivem em determinadas zonas do país, podem-se considerar signatários, ou pelo contrário são vítimas deste contrato.

O processo de guetização é, na relação com o Estado, a perversão total do contrato social. No lugar de proteger estas pessoas, a polícia parece antes designada, por defeito, para proteger os outros deles. Funciona como força tampão para aqueles que têm a sorte de viver nas zonas centrais e abastadas não sejam incomodados por aqueles que sofrem do pecado original de serem pobres, garantindo que se mantenham invisíveis na periferia.

Não é necessariamente um mal moral dos polícias, individualmente considerados, mas um vício institucional. É o Estado que falha. Falha para com aquelas pessoas porque em vez de as abrigar, nos termos do contrato social, as isola e faz delas suspeitos sem culpa.

É um sistema dual, os quais são respeitados pelo contrato social veem na polícia a sua segurança, enquanto os outros, os pobres das periferias, veem aí o seu carrasco. Segundo Hobbes, é o medo que faz os homens saírem do Estado de Natureza e “assinarem o contrato”. Para os pobres, o medo prevalece. Ainda não lhes fizeram chegar o contrato para assinarem.

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