[Opinião] Direito a Existir

CRÓNICAS/OPINIÃO João Ferreira

Um artigo de 3000 carateres não consegue captar a extensão do terror dos ataques que nos últimos dias assolaram as vidas das populações israelita e palestina. A acompanhar o horror, retorna a guerra como instrumento normalizado de política externa, dominando nos media a indignação seletiva e, pior, os apelos vingativos à violência. Presenciamos massacres a serem legitimados por uma maioria de pessoas em posições de influência e poder que opta por ocultar as raízes profundas de um conflito com 75 anos, prevendo-se a repetição do mesmo ciclo sangrento.

Existe uma expressão latina a que se recorre em períodos históricos de violência. Ex nihilo nihil fit. Ou seja, nada surge do nada. Embora hostil à retórica inflamada que tolera a brutalidade de um status quo insustentável, especialmente para um povo agredido ao longo de décadas, a contextualização é indispensável a quem interessa a paz. 

Há 75 anos a Assembleia Geral da ONU aprovou um plano de partilha prevendo a criação de dois Estados no território histórico da Palestina. O Estado de Israel existe desde 1948. A criação do Estado da Palestina está por cumprir. Na criação do Estado de Israel, cerca de 750.000 palestinos foram expulsos violentamente das suas casas e das suas terras pelas forças israelitas, refugiando-se nos países vizinhos. Um acontecimento conhecido por Nakba, que significa catástrofe. Nas palavras de Edward Said, os palestinos “tiveram as suas vidas destruídas, os seus espíritos esgotados, a sua compostura destruída para sempre no contexto de deslocações em série, aparentemente intermináveis”. Além do êxodo forçado, Israel ocupa militarmente os territórios da Palestina, nos últimos 56 anos, privando os palestinos dos seus direitos mais básicos. Confisca-lhes as terras, derruba milhares de casas e escolas, sujeitando os 2,5 milhões de palestinos da Cisjordânia à lei militar, o que várias organizações internacionais designam de apartheid. Simultaneamente, no período de 10 anos, o número de colonos israelitas aumentou de 380 mil para 700 mil na região. Quanto a Gaza, onde vivem mais de 2 milhões de palestinos, metade dos quais crianças, está transformada na “maior prisão a céu aberto do mundo”, sendo cercada por muros fortemente militarizados, arame farpado, navios da marinha israelita ao longo da costa e um bloqueio medieval que tem reduzido as suas vidas a uma punição coletiva nos últimos 17 anos.

Confrontada com a humilhação quotidiana de um povo, a comunidade internacional tem aprovado centenas de resoluções, as quais nunca demonstrou vontade em cumprir. Entre 2015 e 2022, a Assembleia Geral da ONU adotou 140 resoluções alusivas a condenações de Israel. Não há comparação com qualquer outro país. Nem uma foi respeitada.  

Daí que, na sequência de décadas de absoluta impunidade e violência estrutural imposta aos palestinos, o que espera quem apela repetidamente ao direito de retaliação de Israel, como acontece com os EUA e a UE, sem que se questione, igualmente, como é que o povo palestino responderá a 75 anos de limpeza étnica, a 56 anos de ocupação e apartheid, bem como a 17 anos de punição coletiva em Gaza. Além da cobertura política do terror imposto por um regime colonial, tais apelos traduzem uma cumplicidade com os crimes de guerra que se sucedem, tanto mais quando proferidos após 6000 bombardeamentos indiscriminados num território com a área de Tomar e após a imposição de um cerco que dura há 10 dias, em que foi cortado o acesso a água, eletricidade e combustível, infligindo-lhes condições de vida que visam a punição e morte de parte de um povo, o que configura um caso evidente de genocídio. A quem interesse a paz, além da exigência de um cessar-fogo imediato, saberá que a mesma só poderá ser alcançada quando se cumprir o que outrora foi prometido: a criação de um Estado independente e soberano da Palestina. Para que tal seja uma realidade, deverá exigir-se a retirada de Israel dos territórios ocupados; o fim dos colonatos ilegais e do sistema de apartheid.

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