O Zeferino era o morgado de uma respeitável prole, que tinha como seu endiabrado benjamim, o Manel. Ele era um ser humano especial, que embuçava num corpo de quase gigante e modos abrutalhados, uma delicada sensibilidade de poeta. Era um adulto que se perdia a escutar os quiméricos sonhos da criançada e as suas inelutáveis desilusões, dores e frustrações. Inspirava-lhes subtilmente os caminhos, sem lhes estorvar o dulcíssimo sabor da descoberta. Sofreava-lhes as loucuras maiores, amparava os seus sempre arrebatados projetos e unguentava-lhes os muitos tralhos, que a vida sempre cobra, a quem como eles vivia a todo o pano. Ele era o irrefragável mentor, amigo e irmão mais velho dos três da “vigairada”, o Manel, o Tónio e o Lelo. Entre tantos outros tesouros, fora ele que, sem darem por ele, com uma sugestão aqui e um alvitre ali, os alcandorou a mestres maiores da altaneira ciência da construção de burburinhos.
Graças a ele, pediam meças a quem quer que fosse na arte de colher as fitas no ponto, nem demasiado túmida, que se dobrasse, nem demasiado seca que se partisse, a encaixá-las numa cruz perfeita e a pintá-las em quadrados com sumo de amoras verdes, maduras e pretas, que depois o Manel, o artista do grupo, chavetava a ouro com belíssimos arabescos a lápis.
O Manel, até a dormir, arreganhava a tacha, verdade seja dita, o fedelho esbanjava alegria a pataco e, por isso, quando naquele dia apareceu com cara de enterro de mãe, pressentimos logo que havia galinhaço dos grandes. Tentando segurar as lágrimas, que os homens não choravam, desembuchou de rajada que no dia seguinte a sua família ia fugir para a França. Completamente varados, ouvimos um miúdo de dez anos, de voz entrecortada, a tentar fazer-nos perceber por que raios aquela gente de excelente cepa, aquela família honesta tinha de se esgueirar pela calada da noite para aquele fim do mundo, como se fossem criminosos.
“Tentando segurar as lágrimas, que os homens não choravam, desembuchou de rajada que no dia seguinte a sua família ia fugir para França”
Nesse dia dorido, voaram uma última vez até ao grande lago do Amieiro Galego com o Lelo à frente com o seu burburinho a fazer de hélice frontal e o Manel e o Tónio um nadinha atrás com os seus burburinhos a fazer de hélices laterais. Lá chegados, nadaram furiosamente como se quisessem atropelar o porvir, depois, ofegantes, deixaram-se ficar tempos infinitos muito quietos a boiar, mirando aquele imenso céu azul.
A guerra colonial era, naqueles tempos, uma dolorosa cruz cravada a sangue-frio no futuro de todos os rapazes. As suas vidas e a das suas famílias dividiam-se num antes e, para os que tinham sorte, num depois dela. Os amores, os casamentos, os filhos, os cursos eram súbditos indefesos deste implacável sortilégio do antes ou depois da guerra. Uns casavam antes para não desperdiçar um segundo que fosse de tão incerto futuro, outros esperavam para depois, travados pelo horripilante pesadelo de fazer das suas amadas viúvas ou, pior do que isso, dos seus filhos órfãos. Os amores, esses eram, num caso e noutro, torturados pela saudade, pela distância e pela lancinante angústia da incerteza, apaziguados apenas por um corrupio de aerogramas e um punhado de esperança. Dos bafejados com um depois, raros voltavam verdadeiramente inteiros, uns regressavam estropiados, outros saíam da guerra, mas a guerra não saía deles.
O Zeferino tinha decidido não aceitar aquela cruz iníqua. Recusava terminantemente combater numa guerra por uma terra que entendia não ser a sua e, pior que isso, lutar contra aqueles que lutavam por uma pátria que desde sempre fora a sua. A única forma de afastar aquela cruz era fugir do seu país, que tão perdidamente amava. Não tinha quaisquer ilusões que os figurões do reino lhe atiçariam todos os seus algozes e que o enjeitariam para sempre como um cão raivoso. Sabia bem que esta sua dilacerante escolha lhe arrancaria as raízes, que tão profundamente cravara neste pedaço de chão. Raízes, que tão orgulhosamente entrelaçara nas dos seus avoengos, pais, irmãos e de tantos e tão bons amigos do peito. Não tinha a mais pequena dúvida, que elas eram a sua melhor parte e que, sem elas, seria apenas um destroço em carne viva. Quando comunicou a sua decisão à família, o seu pai, depois de uns momentos de silêncio. disse:
– Se um de nós não serve para este país, então este país não serve para nenhum de nós.
Passada quase uma vida, o Lelo, num tristonho dia de inverno, fez uma visita muito especial ao lago do Amieiro Galego, agigantado pelo dilúvio dos últimos dias. Um cerrado lençol de ameaçadoras nuvens negras penumbrava-o e, numa torrente barrenta, as águas precipitavam-se rugindo açude abaixo, desfazendo-se numa imensa poalha de gotículas e de espuma. O lago pareceu-lhe amargurado, triste e solitário. Tão diferente do espelho azul-celeste, polvilhado por fiapos de nuvens brancas e rutilado por um festival de brilhos onde os três, acariciados por um sol quase poente, nadaram juntos pela última vez.
Tinha acabado de saber que o Zeferino tinha morrido. O Manel, a seu pedido, estava naquele exato momento a lançar as suas cinzas a um rio lá no fim do mundo, onde há tantos anos tinham sido acolhidos. Caminhou lentamente até ao açude, abriu a velha caixa surrada onde guardava os burburinhos com que os três tinham feito o seu último voo, um a um ergueu-os ao vento, fê-los girar por breves momentos e, juntamente com as lágrimas que não conseguiu conter, lançou-os ao rio.
Aqueles dois rios ligados por amigos comuns encarregar-se-iam de, mais dia menos dia, fazer com que, num qualquer mar longínquo, os três burburinhos se reencontrem com Zeferino e quem sabe se este, com a sua sempiterna sabedoria de irmão mais velho, faria o milagre de apaziguar finalmente a dor e a revolta dos três da “vigairada” infligida por uma guerra tão estúpida como todas as guerras que os espoliou de um sagrado pedaço de infância, de um amigo do peito e de um irmão mais velho.