[Crónica] Das ilhas aos bairros: habitações de trabalhadores nas indústrias do Ave

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

No século XIX, o impulso industrial da têxtil teve um impacto enorme no modus vivendi das populações que residiam junto ao Ave. Os salários fixos e regulares das fábricas atraíram e fixaram gente. Certamente que grande parte de nós conhece pessoas naturais de Felgueiras, Fafe, Póvoa de Lanhoso, Cabeceiras de Basto, Ribeira de Pena, Vila Pouca de Aguiar, entre outros concelhos, que vieram para aqui morar e trabalhar. Estas coisas são tão óbvias que nem as associamos ao êxodo rural ou às migrações dos nossos avós. À exceção de Guimarães, localidades como Negrelos, Aves, Santo Tirso, Trofa, Famalicão, Riba de Ave, Caniços (Sanfins), Bairro, Joane, Pousada de Saramagos, Delães, Pevidém e Vizela, na primeira metade da centúria de oitocentos mais não eram do que simples aldeias marcadas por um terreiro circundante a uma igreja, a um mosteiro e pouco mais do que isso. Os que aqui trabalharam transformaram e ergueram com os seus braços aquilo que somos hoje. Mas na têxtil nem todos desfrutaram de vidas tão suaves quanto as sedas, as chitas, os veludos ou as popelines. A maior parte viveu entre o barulho ensurdecedor dos teares, com os pulmões sujos do carvão de São Pedro da Cova, com as queimaduras feitas nas fornalhas das caldeiras ou com os calos da aspereza do granito azul acabado de rachar.

Com as mutações sociais do século XIX, aos trabalhadores agrícolas da mais baixa condição – jornaleiros e criados de servir – juntaram-se também os assalariados industriais, muitos dos quais vindos de fora. Se, na agricultura, a ascensão social era dificílima, na indústria havia mais oportunidades. Alguns chegavam a mestres e outros, muito poucos, a patrões. Contudo, a maioria eram indiferenciados, comummente designados como empregados ou fabricantes. Outros tinham especialidades melhor ou pior remuneradas: tecelões, fiandeiros, tintureiros, fogueiros ou afinadores, entre outros.

“Nas zonas mais rurais, até meados do século XX, uma parte dos trabalhadores, para reduzir custos do arrendamento, acabava em cabanas de madeira, geralmente localizadas em montes e bouças”

Conforme acontece um pouco por todo o mundo, os fluxos migratórios regiam-se através de entreajudas surgidas nas relações de parentesco e vizinhança. Por exemplo, era comum que pessoas provenientes de uma determinada povoação do interior viessem ocupar os lugares deixados por familiares ou conterrâneos já instalados. Muitas vezes, estes últimos eram trabalhadores rurais que conseguiam emprego nas unidades industriais e, entretanto, forneciam aos seus patrões contactos de mão-de-obra que substituísse os seus trabalhos de caseiros de terras, “criados de servir” ou jornaleiros em casas de lavoura. Com estas relações e funções conseguiam um teto para dormir na propriedade do patrão ou na casa de um familiar. Ainda hoje, (e)migrar tem essa dificuldade acrescida: alugar casa ou quarto é difícil e caro.

Nas zonas mais rurais, até meados do século XX, uma parte dos trabalhadores, para reduzir os custos do arrendamento, acabava em cabanas de madeira, geralmente localizadas em montes e bouças. Os proprietários dessas terras autorizavam estas construções para que esses caseiros – conhecidos como cabaneiros – vigiassem e evitassem os roubos de lenhas, matos e pinhões. Apesar de todo o aparelho industrial, as gerações mais velhas de muitas freguesias de Santo Tirso, Famalicão e Guimarães ainda se recordam destas barracas. Nas zonas mais industrializadas os operários arrendavam habitações multifamiliares, quase todas exíguas. Referimo-nos às ilhas. Muitas ainda existem, em boa parte dissimuladas atrás de um simples portão. Algumas, mais não eram do que a subdivisão de uma casa, inicialmente construída para uma família, de forma a acolher vários fogos. Outras eram anexos multifamiliares edificados ao fundo do quintal da residência de um proprietário. Ainda haviam as que eram construídas em linha, onde as habitações se dispunham longitudinalmente. A maior parte, por norma, possuía uma retrete comum, utilizada diariamente por dezenas de pessoas.

Ilha do Porto. Fotografia de Guilherme Barreiros. Arquivo Municipal do Porto.

Consequência desta, e de outras insalubridades, foi o facto de, em 1899, a região Norte ter sido a última na Europa a ver deflagrar um surto de peste bubónica, a mesma peste negra da Idade Média, com especial incidência no operariado industrial do Porto, cidade onde estas construções ainda hoje são numerosas. Perante a pandemia e as inúmeras ilhas, o médico Ricardo Jorge, chefiando as entidades sanitárias, juntamente com as autoridades administrativas e militares, impôs à cidade um cordão sanitário de quatro meses. Com o surto, as autoridades estatais, e só por uma questão de saúde pública, decretaram alterações aos processos de licenciamento de habitações deste tipo, exigindo a melhoria das condições higiénicas. Nasceram assim os bairros operários que, a partir dos inícios do século XX, foram edificados em grande número nos arredores das fábricas têxteis. Numerosos e simples, foram construídos em perpianho de granito habitações independentes ou geminadas, mas com retretes autónomas. Muitos ainda estão de pé, maioritariamente reformulados, guardando silenciosamente as memórias dos anónimos que ali viveram.

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