A paisagem industrial ao longo dos rios, cuja implantação fora ditada pelo recurso à energia hidráulica, demonstra a relevância do processo industrial do Vale do Ave no contexto histórico do concelho. Os nomes de equipamentos culturais, desportivos, ruas e avenidas, dão-nos a conhecer as dinastias industriais, com origens familiares nos inícios da industrialização da região e que se perpetuaram ao longo do séc. XX. Porém, de que é feita a história daqueles que foram obrigados a crescer no “aterro”, a partir pedra ou a carregar terra e cascalho, e se sacrificaram por décadas com salários de miséria, ao ritmo intenso da fábrica, suportando a ostentação dos que vieram a ser agraciados com o nome das nossas ruas?
Por ser uma pequena região industrial, em que a burguesia deteve e detém o poder social e cultural assim como o poder económico oriundo da propriedade dos meios de produção, a história operária, especialmente o quotidiano da sua exploração e práticas de resistência, fora sucessivamente relegada para segundo plano. Porém, existe quem resista e transporte no seu corpo uma espécie de “reservatório da memória”. As suas marcas e testemunhos representam o mais fiel retracto da sociedade disciplinar de outrora, em que hierarquias reproduziam relações de poder através da punição e da proibição – exemplarmente retractado na obra de Mariana Rei, “Do Operário ao Artista – uma etnografia em contexto industrial no Vale do Ave”.
“As operárias viviam uma dupla condição de exploração (por classe e sexo), em que punições serviam de elemento de chantagem sexual, sendo as chefias apenas exercidas por homens.”
João Ferreira
A Fábrica era o exemplo por excelência desses tempos sombrios. Não só consistia num espaço produtivo e reprodutivo, mas também de exploração económica e de dominação, em que as condições laborais e a disciplina da subordinação invadiam todas as esferas da vida dos trabalhadores. O dia-a-dia era marcado por um estado permanente de alerta, em resultado da ameaça implícita de despedimento ou castigo – em regra, 3 dias sem trabalhar e receber ou 1 dia a trabalhar para “o calo” (sem salário) – e, por conseguinte, sob ameaça da fome, agravada pela circunstância das famílias partilharem o mesmo local de trabalho. Operários eram punidos por falar, rir, pelo modo de vestir. Não raras vezes, eram suspensos sem data de regresso, obrigando-os a deslocações diárias a pé, por vários quilómetros, de madrugada e de barriga vazia, para implorar ao portão o seu regresso. A dignidade despia-se em público.
A fábrica também não era apenas um espaço em que os operários se ligavam afectivamente, mas ainda um espaço de segregação entre patrão e trabalhadores, empregados e operários, homens e mulheres. A maioria não tinha dinheiro para aceder aos bairros operários ou à cantina, os quais eram pagos. As operárias viviam uma dupla condição de exploração (por classe e sexo), em que punições serviam de elemento de chantagem sexual, sendo as chefias apenas exercidas por homens.
A fábrica não era apenas um espaço de subjugação e conformismo, mas também de resistência e luta. A resistência tanto era rotineira e individual, marcada por pequenos “roubos” que as serventes da cantina faziam das sobras de comida, para depois as distribuir pelos operários que chegavam à fábrica de barriga vazia, como também atingia a dimensão colectiva, mais ou menos organizada, com exigências salariais e greves.
A história deste concelho não se faz sem a experiência de resistência do movimento operário. Para que não se descure tal experiência e as expressões das transformações sociais que se seguiram, torna-se necessário criar espaços e projectos de preservação e divulgação dessa memória.