[RETROSPETIVA] O legado do padre Fernando Abreu

ATUALIDADE

Na hora da despedida o Entre Margens questionou alguns dos colaboradores mais próximos do padre Fernando Abreu ao longo dos últimos 39 anos sobre o legado que o pároco deixa na paróquia de São Miguel das Aves. [Original – 9 de julho de 2020]

Não é comum. Esta, aliás, pode ser uma expressão utilizada em vários aspetos da vida pública do Padre Fernando Abreu. Não é comum um padre estar 39 anos consecutivos de serviço na mesma paróquia. Não é comum um pároco ser uma figura tão pouco consensual e ao mesmo tempo tão presente no tecido social de uma comunidade. Por estas e por outras razões, o Padre Fernando Abreu não é comum.

Ao longo destas quase quatro décadas as histórias foram-se acumulando, peculiares e furiosas, num novelo sem fim cujo o único fio condutor é uma personalidade indomável e um sentido moral irredutível.

Em 1981, o desafio parecia hercúleo. Era preciso reconstruir a toda uma estrutura eclesiástica e a ligação à comunidade. Ao fim de todos estes anos, a obra, física e espiritual, social e religiosa, é incontestável. 

Em voto de louvor aprovado por unanimidade da assembleia de freguesia de Vila das Aves, fica vincado o percurso disperso e diverso que tocou todas as áreas da sociedade avense: educação, vertente social, desportiva e social.

Da renovação do Patronato e Casa dos Pobres ao Lar da Tranquilidade e ao Museu Eclesiástico. Dinamizador das Jornadas Culturais, Oficina de Música e do Grupo Coral. É capelão dos Bombeiros Voluntários de Vila das Aves, promotor dos “Ases do Pedal” e, sobretudo, de uma das tradições anuais mais importantes na vida social da vila: a realização do cortejo pascal.

No final de contas, “a sua postura muito própria, imagem de marca, pautava-se sempre pela defesa do bom nome de Vila das Aves”, pode ler-se no voto de louvor.

Mas o legado mede-se em muito mais do que em obra feita. Legado remete para algo mais duradouro, para um plano mais elevado. É a essência do que fica e que transparece na memória coletiva.

O Entre Margens convidou seis colaboradores próximos que ao longo dos anos foram interagindo diretamente com os projetos e iniciativas que o padre Fernando Abreu foi levando a cabo. A pergunta que lhes foi feita é simples, mas de resposta complexa. Qual o legado que o padre Fernando Abreu deixa em Vila das Aves?

Mudar mentalidades

Em plenos anos 80, a Igreja portuguesa tentava reorganizar-se sob o manto reformador do Concílio Vaticano II (1962-1965) e pós-revolução dos cravos. Se a década fora um verdadeiro tornado na sociedade portuguesa, transformando-lhe os alicerces morais e os costumes quotidianos, a Igreja não fugiu desses ventos de mudança, pelo contrário.

O padre Fernando Abreu foi exemplo pleno dessa mudança de atitude e mentalidade sobre os alicerces da espiritualidade católica. Como revela Alexandre Martins, estudante de teologia e diretor artístico do Grupo Coral de Vila das Aves, talvez “o maior legado tenha sido “a revitalização da pastoral que chegou a esta paróquia em força nos anos 80, como provam as várias obras, instituições, grupos, movimentos e órgãos paroquiais que germinam nessa altura pela mão do Pe. Fernando, sempre com o seu jeito e forma de agir peculiar.”

Para Luís Américo Fernandes, homem que foi diretor artístico do grupo coral durante décadas, “a entrada do padre Fernando Abreu em 1981 corresponde a uma dupla viragem de mentalidades: a de um catolicismo ainda muito receoso dos novos ventos que sopravam do Vaticano II e de uma paroquialidade marcada pela supremacia do Sr. Abade e de colaboradores arreigados ainda ao antigo regime.”

“Com efeito, a juventude e um ou outro arroubo de entusiasmo e carácter do novo pároco fizeram a diferença pela positiva e pela negativa e introduziram ruturas e dinâmicas na paroquialidade, primando por uma aposta na formação e na consciência de um laicado mais colaborante e participativo”, destaca.

O choque com a realidade avense foi forte e frontal. A sua “grande capacidade de trabalho”, intelecto e memória “invejável” fazia dele uma figura peculiar. “Não era fácil acompanhá-lo”, refere Felisbela Freitas, membro do Conselho Permanente.

“O legado do Padre Fernando é histórico para a igreja e para a sociedade civil pelo trabalho em prol da cultura, numa simbiose entre o religioso e o profano”

Alexandre Martins

“Deixa em muitos de nós a marca do crescimento na Fé, pela forma como celebra Eucaristias e ritos religiosos; o que também se demonstrou uma faca de dois gumes, pois nem todos o aceitaram, passando a evitar as Eucaristias que celebrava, confundindo a “pessoa” com o ‘ministério’ de que estava investido”, explica.

Maria Henriqueta colaborou com o padre Fernando Abreu nos primórdios da sua chegada a Vila das Aves, numa altura em que, conta, foi “contactada pelo mesmo, para colaborar com na reorganização da pastoral paroquial.”

Hoje, “refletir sobre uma década de trabalho na paróquia é sentir que se tornara necessária uma renovação de toda a comunidade católica e ao mesmo tempo estar aberta a um mundo em profunda transformação social, económica, política e religiosa”, revela.

Agora, quase três décadas depois do trabalho realizado, Maria Henriqueta Alves está certa de que “nada foi por acaso e que tudo o que foi solicitado, foi realizado com o espírito de missão e muita dedicação, vindo a tornar-se num período de maior participação e adesão de quase toda a comunidade da paroquial”.

Obra que se vê

“Foi um empreendedor que deixou um legado valiosíssimo”, diz Rita Herdeiro, colaboradora próxima sobretudo no Patronato. Obra que se estende pelo património edificado, o Lar da Tranquilidade, Centro de Lazer António Martins Ribeiro, Patronato e Casa dos Pobres, pelo Museu Eclesiástico, mas também pelo que deixa em património intelectual.

É que aqui se exprime na sua vertente mais clara, seja pela dedicação à música, através da criação da Escola de Música e do Grupo Coral, seja ato de equilíbrio que sempre cultivou entre a cultura espiritual e profana, onde as Jornadas Culturais são o seu epítome.

“O legado do Pe. Fernando é também histórico para a Igreja e para a sociedade civil pelo trabalho em prol da cultura, numa simbiose entre o religioso e o profano”, assinala Alexandre Martins.

Um evento que Luís Américo Fernandes lembra, “durante o mês de outubro, ao longo de quase vinte edições, abordaram temas e problemas locais, eclesiais e nacionais, deixando toda uma literatura e uma pegada criativa de grande fecundidade que muito honra a paróquia.”

Outra das joias da coroa é o cortejo pascal, um evento que, para Sebastião Lopes, “é um ex-libris de Vila das Aves”, “mobiliza toda a pastoral paroquial com a apresentação de vários quadros bíblicos com tanta convicção acaba por atrair à rua toda a gente da terra e freguesias vizinhas.”

“Fé inabalável”

É com esta expressão que o mesmo Sebastião Lopes descreve o homem e o pároco com quem teve a oportunidade de trabalhar proximamente. “Sinto-me um privilegiado por ser daqueles que colaboraram com o Padre Fernando durante muitos anos na pastoral paroquial, em várias vertentes. Muitas vezes com ele concordei, outras nem por isso, mas sempre o admirei. Cresci com ele na fé porque o seu exemplo é contagiante”, salienta.

De acordo com Alexandre Martins, há ainda algo que o marca na sua atividade na paróquia, a atenção e o zelo que teve para com os mais velhos.

“O cuidado com os outros, sobretudo com os mais velhos que tanto gostava de visitar, com a educação cristã das crianças, a preparação cuidada dos sacramentos e uma visão (por vezes “profética”) da relação da Igreja com o mundo fazem destes anos de paroquialidade um instrumento imprescindível para a construção da identidade cristã da nossa comunidade”, frisa.

Uma análise com a qual Rita Herdeiro alinha totalmente. “Sempre foi um amigo, aliado e defensor dos jovens, em todas as vertentes da Igreja. E um dedicado protetor dos idosos, zeloso da sua dignidade, principalmente nas situações de doença e sofrimento”, afiança.

Felisbela Freitas, por seu turno, destaca o Museu Eclesiástico. “Visitei três vezes, na última, impressionou-me a mudança operada, porque fruto do seu trabalho árduo, já doente e em tempo de confinamento”, colocando em evidência a sua “resiliência e capacidade de organização”.  

O futuro da paróquia é por agora, incerto. Espera-se a nomeação de um novo pároco que, certamente, terá um grande vazio para suprir. Em termos de trabalho eclesiástico, social e pessoal. De uma maneira ou de outra, ninguém ficava indiferente ao Padre Fernando Abreu.

Qualquer leigo percebe que as adversidades que a Igreja vive são mais do que muitas. Os desafios, esses, também grandes. “Para o futuro e o bom aproveitamento desde legado penso que teremos de reunir sinergias para combater o individualismo”, adianta Alexandre Martins, de maneira a que “sejamos de facto uma comunidade que faz pontes e não que edifica muros em torno de si ou em torno dos seus interesses.”

A paixão pelo Desportivo das Aves

Uma das facetas públicas mais fascinantes do padre Fernando Abreu é a sua fervorosa paixão pelo Clube Desportivo das Aves. Apaixonado por futebol, desde a sua chegada que se envolveu com o clube da terra, das mais variadas formas.

Foi presidente da assembleia geral do clube, mas eram as suas demonstrações de apoio incondicional ao Desportivo que fizeram dele um símbolo próprio entre a massa adepta.

Inesquecível foi a sua performance no Jamor, aquando da final da Taça de Portugal onde celebrou a eucaristia dominical na mata do Estádio Nacional antes da partida frente ao Sporting.

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