[Retrospetiva] A ‘lendária’ escultura do Cine Aves finalmente revelada

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A “Apologia da música” afrontou a moralidade rural paroquial e foi apeada ainda antes da inauguração do edifício em 1951, na sequência duma exposição ao governo apoiada pelo arcebispo de Braga [original – 24 setembro 2020]

A tese de mestrado em arquitetura de Dulce Alves Pereira não é apenas um trabalho técnico de definição de procedimentos e projetos da sua especialidade, tendo em vista uma possível reabilitação. Como resultado de uma pesquisa exaustiva nos arquivos, ela contém o historial da construção do edifício, analisando o contexto socioeconómico da região há setenta anos, acompanhado a evolução do processo de licenciamento e de fiscalização e, citando documentos da época, realça a ousadia de Artur Alves e Castro, médico, e Manuel Dílio Silva, industrial, que se agigantaram para levar a cabo tão arriscado empreendimento. “A casa de espetáculos representou a chegada da modernidade para esta comunidade”, refere a arquiteta, com toda a razão.

Trata-se de um “edifício moderno do Estado Novo com um modelo muito característico que alberga cinema e teatro, um cineteatro” e com uma presença imponente na paisagem ainda hoje, uma grandiosidade que era seguramente muito mais sentida em 1951, ano em que foi inaugurado.

Até recentemente nem sequer se sabia quem foi o arquiteto autor do projeto. Foi possível constatar, através dos documentos originais reproduzidos na tese, que ele assina como Mário Borges. O risco do Cine Aves denota um trabalho de qualidade, mas não foi possível obter outra informação sobre o arquiteto.

Como sinal de modernidade: o projeto original apresenta o esboço de elementos decorativos na fachada, sem definir de que se trata exatamente. Foi esta decoração da fachada que tornou famoso o Cine Aves ainda antes da sua abertura. Até hoje não era conhecida qualquer fotografia onde fosse visível o aspeto da composição escultórica.

Graças aos bons ofícios de Artur Pimenta Alves, filho do fundador Artur Alves, que teve a amabilidade de procurar nos arquivos da família, é possível tornar pública a imagem do lendário motivo de polémica que bem recorda quem tem agora mais de setenta anos.

Toda a história anda à volta de uma figura de mulher, nua, colocada a cerca de dez metros de altura. Tratava–se de uma obra do escultor Manuel Pereira da Silva, formado na Escola de Belas Artes do Porto, um artista que colaborou na decoração de diversas obras de vulto nomeadamente no Porto e em Viana do Castelo.

A saga terá sido alimentada com as críticas que o correspondente local do Diário do Minho e do Jornal de Santo Thyrso, o Padre Joaquim da Barca, foi inscrevendo nas suas crónicas. A 8 de maio de 1951, no diário que se publica em  Braga, dizia: “na medida em que vão caminhando para o fim as obras do Cine Aves, assim vai crescendo do desgosto da nossa gente por causa da «Alegoria da Música» que lhe chaparam na frontaria. Nós já aqui escrevemos que a dita «Alegoria» era uma infelicidade em toda a linha. E é-o. Não tem arte nenhuma, briga com o bom gosto e ofende a moral. Ofende a moral, gravemente, escandalosamente.” E continua: “foi bem inglória a façanha dos proprietários do Cine Aves! Uma virago de cimento armado mal cabacada, inteiramente nua, e uma indecentíssima atitude!…”; “para mim, o Cine Aves fechou antes de abrir”.

Numa outra crónica, o correspondente chega a sugerir outros motivos “para adornar, justificar e recomendar o Cine Aves, em vez da pobre nua, o busto de Gil Vicente, de Almeida Garrett. E até não ficaria lá muito melhor que a desgraçadinha, que ainda não fugiu envergonhada só porque não pode quebrar os parafusos que a prendem à parede, um grande lampião artístico ou uma águia, símbolo da glória, ou um açafate de glicínias e rosas?”.

É notório o impacto que a escultura teve no meio rural em que a maioria da população era analfabeta das primeiras letras, que fará de formação artística. A escrita do Padre Joaquim da Barca seria um eco desse impacto na sociedade local ou terá sido a pena do autor dos textos que amplificou tal impacto? Não admira, pois, que as ditas “forças vivas” no regime do Estado Novo alinhadas com as autoridades religiosas, numa sociedade em que prevaleciam os ideais da moralidade tradicional, tivessem levado por diante a iniciativa de expor o seu incómodo ao ministro da educação, por sinal, nessa época, um conhecido tirsense.

“Tendo só em vista a defesa da moralidade pública, encarecidamente rogamos a V. Exª. medidas enérgicas e imediatas no sentido de que a malfadada figura desapareça o mais depressa possível dos olhares ainda castos das nossas crianças e juventude. A Bem da Nação”.  O ofício de 11 de junho de 1951 tem a assinatura do presidente da Junta, de dois “proprietários”, de “um mestre fiandeiro e da União Nacional” e do pároco. Uma carta extensa em que se refere que a “Alegoria da Música” é classificada pelas crianças de “macaca” e pelo povo de “moscovita”, que está na passagem das crianças para a escola, que é completamente inestética, condenada anatomicamente pelos entendidos como autêntico aborto… “Sem exagero julgamos a nojenta figura  um ataque constante aos bons costumes deste povo e grande perigo para a moralidade pública”.

Na sequência desta exposição “que vai ser presente por parte do reverendo pároco e mais individualidades da freguesia”, o arcebispo de Braga envia também carta ao ministro da educação garantindo a veracidade do que é exposto e que “lhes assiste toda a razão e justiça”. Na correspondência pode ler-se que “a referida decoração, se em qualquer meio é reprovável , naquele meio que constitui um imenso agregado populacional de operários fabris, onde ainda não penetrou o vírus corruptor de doutrinas e práticas subversivas, é absolutamente condenável”.

É entre parenteses no meio do ofício do pároco e dos outros subscritores locais que está aquilo que foi, objetivamente, a orientação para a solução radical do processo, à maneira de Pôncio Pilatos: a decoração “parece não estar no projeto submetido à aprovação”. Assim, sob despacho do Ministro, ficou decidido levantar auto de transgressão e dar ordens no sentido de ser apeada a figura.

O autor da “Alegoria da Música” protestou, em carta ao Inspetor Geral de Espetáculos, mas sem resultado.  “Como até hoje, mais não se tem exigido nos projetos, além duma simples indicação quanto a decorações, e por vezes nem isso, fica demonstrada a nossa boa fé em cumprimento da lei. Quanto ao principal motivo – da figura ser imoral – que tão diretamente me tocou, tenho a honra de informar a Vº. Exª que um inculto correspondente fez umas críticas infames no jornal Diário do Minho, as quais eu prontamente rebati, no mesmo jornal, o que ele pareceu ter aceitado, pois não mais falou, ficando assim aos olhos do público esclarecidos os erros de tais críticas. Confesso que fiquei deveras surpreendido e, a ter continuidade (a determinação de retirar a figura), será mais um tremendo erro que a História da Arte registará, do qual não tenho a mínima culpa.”

Apesar dos protestos do autor da escultura, por não ter o Inspetor “constatado pessoalmente  ou mandado constatar oficialmente” que a obra “não tinha nenhuma das infames intenções que pessoas maldosas lhe têm atribuído, pois a única intenção que houve foi que tal conjunto escultórico fosse puramente decorativo, o que toda a gente reconhece”, a decisão estava tomada e foi executada.

A 28 de junho a empresa Cine Aves publicou, no Jornal de Santo Thyrso, um comunicado em que dava conta de que ia mandar apear a “Alegoria Musical” que adornava a frontaria do seu Cine-Teatro, “por ordem da Inspeção Geral dos Espetáculos, – e não por pessoa que não considerava idónea para tal fim”. E rematava que “esta empresa acata com mágoa a decisão superior, porquanto tinha verificado que a grande maioria da população desta laboriosa terra via sem desagrado o citado motivo alegórico”. Passados quase 70 anos sobre a lendária polémica fica o sentimento de que a “Alegoria da Música”, se estivesse no seu lugar, podia ser mais um argumento para que a salvaguarda do edifício do Cine Aves se tornasse um imperativo local e municipal. Tem-se falado muito de regeneração urbana, mas, a nível autárquico a iniciativa é nula. E como ponto de partida, a classificação do imóvel como de interesse municipal é o mínimo que se deve esperar.

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