Por uma das inusitadas veredas da minha profissão, em que, com demasiada frequência, me deixo embrenhar, vi-me no estranho papel de mestre de cerimónias de uma festa de aniversário-surpresa. Com uma peta mal-amanhada, consegui arrastar o intrigado sr. Almério a um “stand” de automóveis. Percebi, divertido, que este, cada vez mais confuso com as minhas explicações esfarrapadas, só ainda não me tinha mandado àquele sítio que a gente cá sabe, devido ao respeitinho que achava dever ao “doutor”.
A conspiração tinha começado há algum tempo atrás, quando quatro mulheres, com o ar de quem ia ao casamento do primo rico com uma farpela em segunda mão, me procuraram no escritório. Disseram-me que trabalhavam com o sr. Almério, e que este lhes tinha dito que eu era um Advogado “sério” e, por isso, queriam que eu lhes tratasse “aí de um assunto”. A mais velha, com mais de sessenta primaveras dobradas, tomou a palavra:
– Pode não parecer, mas saiba o sr. doutor que ele, não desfazendo, é uma joia de pessoa. Está sempre pronto a defender-nos e a ajudar-nos. Ui…, sei lá de quantos apertos ele já nos safou, nossa Senhora. Sabe, trabalhar sozinhas naquela serra, lá naquele fim do mundo, não é pera doce, não. E quando ali a Mena esteve muito malzinha no hospital, foi ele que todos os santos diinhas ia levar e buscar os filhos dela à escola, e nunca deixou que lhes faltasse nadinha. Mas, o carro dele está, com a sua licença, assim como eu, a precisar de reforma, e nós, sem ele desconfiar, há que tempos estamos a pôr algum de lado para lhe comprar o jipe que ele gosta tanto. Graças a Deus, com o bocadito deste mês, já temos que chegue. Mas nós somos, assim umas brutas de poucas letras, ou nenhumas como eu, e como não percebemos nada disto, viemos pedir ao sr. doutor o favor, além da paga, claro, de nos ajudar a comprá-lo e fazer-lhe uma surpresa nos anos dele.
Pasmado, e mal disfarçando um acesso de Pirro, gaguejei-lhes que as ajudaria no que pudesse.
Quando saíram, recordei o dia em que, entre um sorriso amarelo e um “isto só a mim”, conheci o sr. Almério. O homem parecia o Rambo em versão tuga. Ataviava uma espécie de camisola interior de malha larga, sem mangas, um blazer de trespasse com golas tipo smoking e grandes botões dourados, calças de ganga justas e botas texanas. Adereçava o estiloso modelo, um enorme cordão de ouro de duas voltas, pulseira a condizer, um relógio à “sinhosinho Malta” e uma meia dúzia de anéis. O cabelo até aos ombros, besuntado com uma reluzente posta de gel, rematava o mais completo “cliché” que alguma vez vira. Vivia numa casa que era a última de uma rua sem saída e tão estreita que mal cabia um carro. Como o seu vizinho mais próximo resolveu colocar duas enormes vaseiras na rua, que impediam o acesso de carros à sua casa e o obrigava a deixar o carro fora da garagem, a mais de duzentos metros de distância, o sr. Almério procurou-me para “meter aquele gajo no rego”. Numa reunião, destinada a tentar encontrar uma solução consensual, o vizinho entrou e, sem um bom dia, atestou, empertigado, a sua imaculada qualidade de pessoa de bem e de pai de família e, de dedo em riste, trovejou que não admitia que um traste que ganha a vida a explorar mulheres respirasse o mesmo ar que ele. Já a ser empandeirado sumariamente porta fora, ainda cuspiu: “ele que vá viver para o diabo que o carregue”.
Sempre me perdi, aparvoado, na vista deste mirante fronteiro ao santuário da Nossa Senhora da Assunção. Hoje, por sorte grande, aconchegado entre o verde-primavera dos montes, já pintalgados aqui e ali por uns douraditos de verão e um imenso céu azul, rutilava um belíssimo naco de mar, regalo raro dos dias mais límpidos. É neste camarote realengo, velado pela sombra do santuário que, desde moçote, apaziguo os ventos dos dias revoltos, como os de hoje. A olhar, desfocado, este pedaço de paraíso, tentava arquivar a festa de aniversário que me continuava a amolar, mordente como uma ciática.
Quando o assarapantado sr. Almério entrou no “stand” e deu de caras com as suas quatro meninas, como ele dizia, a berrarem desafinadíssimas os parabéns a você à volta do jipe dos seus sonhos, embrulhado num gigantesco laço vermelho, já deixou rolar, emocionado, uma lagrimazita furtiva. Mas, quando elas, completamente histéricas e aos pulos, lhe disseram que ele era a sua prenda de anos, aquele colosso de um metro e noventa e cento e quarenta quilos, desabou sobre os joelhos, como um menino, num pungente mar de lágrimas. As quatro, de lágrima ao canto do olho, acorreram a abraçá-lo e a levantá-lo com um terno: “Então homem, que é lá isso?”.
Saí de lá furioso com o meu ceticismo bacoco, que, mais que injusto, era, para minha sempiterna vergonha, preconceituoso. Não me parecia possível que, naquelas tão singulares circunstâncias de vida, aquelas cinco almas se pudessem estimar e respeitar tão genuinamente. Logo eu, sempre armado em exterminador implacável dos julgamentos sumários, das generalizações e dos preconceitos. Como se não bastasse, a caminho deste meu refúgio “zen”, ouvi na rádio a notícia de uma extraordinária sentença que tinha acabado de condenar um político português e que, à laia de castigo, me atirou à cara:
“Sabendo-se que todas as pessoas humanas partilham a mesma humanidade, que cada uma dessas pessoas tem em si mesma a capacidade para o bem e para o mal, devendo a censura social ser dirigida aos atos praticados e não às pessoas, esta diferenciação redutora entre bons e maus, entre pessoas de bem e bandidos, não reflete a natureza humana, nem pacifica as comunidades humanas“.