[Reportagem] Com Bia Maria e o Grupo Coral de Vila das Aves, “qualquer um pode cantar”

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Oitava edição do Sonoridades juntou cantautora ao coletivo avense para um concerto especial que explorou o poder comunitário do ato de cantar. Centro Cultural recebeu durante quatro dias protagonistas da nova música portuguesa.

À entrada do Patronato, mesmo antes da chegada de Bia Maria para o ensaio geral, na véspera da subida ao palco do Centro Cultural de Vila das Aves, sentia-se uma neblina de nervosismo no ar entre os elementos do Grupo Coral avense. Tinha terminado o ensaio dos cânticos para a eucaristia da manhã seguinte, com o grupo completo, e uma parte dos coralistas aguardava agora na sala pela artista com quem tinham sido emparelhados para um concerto “improvável” que encerraria a oitava edição do festival Sonoridades.

Na tarde daquele sábado, entre chuvadas intermitentes e raios de sol esporádicos, as partes encontravam-se pela primeira vez. Até aí apenas se haviam trocado mensagens de whatsapp face ao desencontro de agendas. Mas ao fim de cinco minutos, era como se uma brisa tivesse levantado a bruma do desconhecido. Empática, de sorriso meigo na face, Bia Maria não se fez rogada. Imbuiu-se no espírito descontraído do coletivo avense e, quando se sentou ao piano para orientar as operações, fez parecer todo aquele cenário natural. Profissionais e amadores, frente a frente, verso a verso, a alinhar as vozes.

“É sempre estranho”, admite Alexandre Martins, diretor artístico do Grupo Coral de Vila das Aves. “Normalmente, quando fugimos ao nosso reportório habitual, sobretudo no que toca à música popular ou profana, investimos em peças à capela. Não é habitual termos outros cantores connosco. E mesmo o acompanhamento musical costuma ser limitado. Portanto, para um coro habituado a um reportório mais clássico, foi um desafio enorme descortinar a essência da artista”.

Para Bia Maria este processo não é inédito. O álbum “Qualquer um Pode Cantar”, editado em novembro de 2024, foi pensado como uma exploração das “vozes coletivas”, das pessoas que “se juntam para cantar”, e ao longo da digressão que a tem levado a vários pontos do país, tem aberto a porta a colaborações com coros locais: com a oportunidade de se juntarem a si em palco.

“Há uma tradição coral muito grande em Portugal, mesmo que às vezes esteja um pouco escondida ou não se dê tanto valor”, começa por dizer, ao Entre Margens. “Acaba por ser sempre um desafio porque se trata de um cruzamento de estilos muito diferentes. De repente estou a dizer a um coro que tem um reportório próprio para interpretar canções que eu escrevi. E os coros acabam sempre por lidar com isso de formas distintas. No entanto, aceitam sempre embarcar nesta aventura”.

Registo do ensaio realizado no Patronato, em Vila das Aves.

Às primeiras passagens por “Roupa Velha”, apesar da inquietação inicial, ficou claro que a proposição ia funcionar. E a cada retoque, sentia-se o efeito na confiança dos coralistas e na modulação da canção. Mesmo em “Marcha da Paridade”, single do disco, faixa que não tinha sido ensaiada previamente, o processo demonstrou que os cantores avenses estavam preparados para o desafio. De partitura na mão, naipe vocal por naipe vocal, ficou tudo acertado para o dia seguinte.

Como explica Alexandre Martins, por “questões logísticas” relacionadas com o palco do Centro Cultural, o coro não contou com toda a sua “massa sonora”. Foi feita uma seleção de doze elementos que se adaptariam melhor reportório.

“Fez-se o ensaio, o pessoal acolheu bem o material. É claro que ficam sempre muito apreensivos porque é um reportório muito diferente, são amadores e eu puxo muito por eles”, assinala o dirigente. “São pessoas que se dedicam e andam aqui por gosto. Querem fazer bem feito porque é o nome do coro que está em jogo. Às vezes, o profissionalismo traz um certo descanso. Mas eu acho que há um brio diferente em quem quer fazer boa figura e deixar o nome da terra bem visto”.

Das várias experiências que tem tido pelo país fora, Bia Maria já encontrou um pouco de tudo. De coros “mais fechados”, onde precisa de ser mais proativa, a grupos com mais abertura. No final deste primeiro encontro em Vila das Aves, era nítido que cabem na segunda caixa.

“Eles foram muito recetivos, começaram logo na brincadeira e a questionar o nome das canções, isso para mim é fantástico”, revela a cantautora, admitindo que também sente essa ansiedade do momento. “A partir do momento em que me sento ao piano, fica demonstrado que as coisas são fáceis de fazer acontecer. Esta é uma experiência para eles aproveitarem e se divertirem”.

Em palco, num concerto que passou praticamente na íntegra pelo álbum de estreia e por algumas das suas edições avulsas, Bia Maria comandou o espetáculo sem pretensiosismo. A sua arma é a empatia, criando uma conexão íntima e intensa com o público, condizente com as canções de sensibilidade melancólica que cruzam a pop e as raízes populares.

O Grupo Coral de Vila das Aves acompanhou-a em quatro das principais faixas do alinhamento, a abrir e a fechar o concerto, sublinhando esse desígnio do canto como “ato comunitário” com poder transformador. No que depender da artista, e do coro que se formou com a plateia no encerramento do espetáculo qualquer um pode mesmo cantar.

Durante quatro dias, o palco do Centro Cultural de Vila das Aves recebeu o concerto enérgico e repleto de surpresas de Cachupa Psicadélica, para gravar na memória; a odisseia musical singular de B Fachada e o rock de semente nacional dos Miss Universo.

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