[Reportagem] A biblioteca que impulsionou a vila a crescer

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Das carrinhas da Gulbenkian à instalação da biblioteca fixa, da junta de freguesia ao centro cultural, desde o início dos anos 60 que Vila das Aves tem acesso a uma biblioteca pública que formou gerações de leitores e cidadãos ativos. 

De quinze em quinze dias, a azáfama na zona do mercado de Vila das Aves, onde as pessoas faziam as suas compras semanais, ganhava um outro ponto de interesse e curiosidade. Miúdos e graúdos, mas sobretudo miúdos, amontavam-se à espera da chegada da carrinha da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian plenos de entusiasmo pelas novidades que poderia trazer.

“Tinha doze anitos e já andava no liceu em Guimarães quando me falaram da carrinha com livros e fui lá ver”, recorda José Machado, em conversa com o Entre Margens. Já gostava de ler, sobretudo livros de cobóis, exponenciado pelo cinema e pelas pequenas revistas de aventuras. A carrinha era uma porta aberta para um novo e para passar o ar de credibilidade, lembra-se de que não se ia vestido de qualquer maneira. “Vestia-se a melhor roupa”.

A carrinha da Gulbenkian vinha com “dois sujeitos”: um condutor e um bibliotecário propriamente dito que perguntava o que a pessoa queria ler e registava os pedidos numa folha.

Tornou-se num ritual. “Imagine-se, naquela altura, gostar de ler e não ter livros. E comprar livros, estava fora de questão”, explica. E o sucesso da carrinha foi fenomenal. Numa época onde as bibliotecas eram locais ermos e fechados em si, a iniciativa da Gulbenkian escancarou as portas de uma nova realidade a milhares de pessoas que de outra forma nunca teriam tido acesso a livros. Sobretudo novidades. Naquelas carrinhas ia o mundo em tempo real. Livros que pertenciam ao seu tempo e entusiasmavam os leitores.

“Quando esta biblioteca cá chegou e depois se fixou, já havia nas Aves uma biblioteca”, lembra o professor, referindo-se aos volumes doados, primeiro, na década de 30 e mais tarde na década de 40. “Ora, entre uma coleção de livros, parte de um espólio, mas que está fechada e uma biblioteca, está-se mesmo a ver, a diferença é enorme”.

Aos olhos de hoje é difícil perceber o impacto na sociedade daquele tempo, numa jovem vila essencialmente operária. O nível de instrução não era grande, mas com o crescimento exponencial da população devido às fábricas, a biblioteca tornou-se em mais um instrumento da vida comunitária.

“Foi a partir desse momento que se começou a fazer algumas coisas aqui nas Aves”, afirma, sem hesitações. “A presença da biblioteca era qualquer coisa de novo, que ia no sentido de despertar a curiosidade das pessoas. E depois uns arrastaram outros. Até aí, estava tudo parado. Ajudou a despertar a sociedade avense”.

Durante quase uma década, de 14 de fevereiro de 1959, data da primeira visita, a 1967, quinzenalmente, era este o ritual. O sucesso da carrinha levou a junta de freguesia da altura a propor a instalação de uma biblioteca fixa, no edifício da Tojela. Assim nasceu a número 22 da rede da Gulbenkian, inaugurada a 11 de junho, integrada nas comemorações das Festas da Vila.

Uma biblioteca de porta aberta com números avassaladores

Há um nome incontornável associado aos primeiros tempos da biblioteca de Vila das Aves. A “dona Celinha”, funcionária da junta de freguesia da época, é uma figura “célebre” entre quem durante anos fazia daquelas estantes repletas de livros uma segunda casa.

“Era ela que atendia todos os miúdos que lá iam e era uma pessoa recetiva, atenciosa e disponível”, recorda Joaquim Moreira, atual bibliotecário, os tempos ainda enquanto jovem leitor. “Comecei a frequentar em 1970. Deixava-nos levar só os livros que eram para a nossa idade. Quando se tem catorze ou quinze anos, há sempre a tentação de levar um livro mais adulto que ouvíamos falar, mas ela não deixava”.

Foram os anos onde se embrenhou nas aventuras escritas por Enid Blyton, fundamentais para a sua formação enquanto leitor e frequentador de bibliotecas que ficaram para o resto da vida.

“É preciso perceber que naquela altura não havia mais nada”, salienta. “A televisão era recente e a maior parte não tinha em casa, os miúdos brincavam na rua ou nos montes e a biblioteca acabava por ser um sítio onde se podia estar. E era de borla. Não se pagava nada e isso também conta”.

Os números eram “avassaladores”. O Entre Margens teve acesso aos registos estatísticos da biblioteca fixa nº22 através dos arquivos presentes, agora, no centro cultural de Vila das Aves e podem deixar qualquer um extasiado com o volume utilizadores mensais e livros emprestados.

Em outubro de 67, logo no início desta odisseia, saíram 1152 livros emprestados. Em 1975, quando já se respirava a liberdade pós-revolução, foram registados os empréstimos de 1198 e 1260 livros, em abril e outubro, respetivamente. Até meados dos anos 80, a média de requisições mensais andava entre os 800 e os 900 livros em circulação, sobretudo entre as camadas jovens. Em 2023, por exemplo, segundo os dados facultados pela Câmara Municipal de Santo Tirso, a biblioteca do Centro Cultural emprestou um total de 668 livros. Números que revelam a mudança tectónica dos comportamentos e prioridades da comunidade, mas também da oferta cultural da realidade do século XXI.

Bibliotecas nunca vão morrer

Joaquim Moreira passou de leitor a bibliotecário em 1986 e assistiu na primeira pessoa às várias fases de transição que o conceito de biblioteca comportou nas últimas décadas do século XX e das primeiras do novo milénio.

“O próprio conceito da biblioteca da Gulbenkian em si era muito interessante relativamente às bibliotecas que existiam na altura. O espaço físico era da junta, mas o mobiliário e fundo bibliográfico era todo da Gulbenkian. Isso era importante porque permitia que os fundos fossem renovados três ou quatro vezes por ano com livros novos, coisa que não acontecia nas bibliotecas municipais”, argumenta. “E tinham ainda outra vantagem: o livre acesso às prateleiras. Quem ia à biblioteca municipal de Santo Tirso, tinha de dizer ao bibliotecário o que queria ler ou procurar, caso contrário não se tinha acesso às prateleiras. Na biblioteca da Gulbenkian não. Tinha-se acesso às prateleiras e podíamos estar lá uma tarde inteira só a folhear e a ler livros”.

A partir de determinada altura, a biblioteca transformou-se num espaço de lazer onde para além dos livros, passou a haver jogos como xadrez, damas, até ténios de mesa a determinada altura. Os miúdos, claro, sobretudo nas férias, começaram a aparecer por lá e ficar tardes e dias inteiros.

Com a chegada dos computadores, nova transformação. Fazia-se fila para poder jogar aqueles “joguinhos rudimentares” nos computadores que a biblioteca disponibilizava, com tempo contado ao segundo para poder dar para toda a gente.

“Fazia-se uma coisa curiosa. Os pais passavam por ali, despejavam os filhos de manhã ou à tarde porque sabiam que estavam bem entregues. A biblioteca funcionava quase como uma ama”, lembra.

Hoje, para além das mudanças tecnológicas e sociais que desviaram jovens e menos jovens do usufruto das bibliotecas no seu quotidiano, é preciso recordar que a rede de bibliotecas escolares serve especificamente esta faixa etária de forma mais ativa do que uma biblioteca pública, fora do ambiente escolar.

Desde meados da primeira década do século XXI que todo o acervo da biblioteca da Gulbenkian de Vila das Aves deixou a junta e passou para o Centro Cultural. Todos os dez mil livros, número que entretanto já cresceu para cerca de dezasseis mil.

O número de leitores pode ser reduzido, especialmente face às estatísticas do passado, mas a boa notícia é que os que existem são muito fiéis. Até os computadores que outrora foram uma prancha de salvação destes espaços, hoje têm pouca utilização. Isto significa que as bibliotecas vão desaparecer? Antes pelo contrário.

“Se há sítio que se deve preservar, são as bibliotecas”, afirma convictamente Joaquim Moreira. “As bibliotecas são o sítio onde se preserva a humanidade. Toda a gente começa a perceber que a informação que circula na internet pode ser completamente condicionada. E na biblioteca tens a liberdade completa de descobrires por ti. As bibliotecas são o último reduto de plena liberdade, humanismo, luta contra a intolerância. Por muito pouco que seja, os poderes públicos têm de preservar isto. Basta um leitor para fazer a diferença e valer a pena”.

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