Na hora da despedida o Entre Margens questionou alguns dos colaboradores mais próximos do padre Fernando Abreu ao longo dos últimos 39 anos sobre o legado que o pároco deixa na paróquia de São Miguel das Aves.
Aqui ficam na íntegra os depoimentos de todos aqueles que colaboraram: Alexandre Martins, Luís Américo Fernandes, Sebastião Lopes, Rita Herdeiro, Felisbela Freitas e Maria Henriqueta Alves.
Felisbela Freitas
Agora que se espera a sua substituição, por motivos de doença oncológica, acedi a escrever, e faço-o, como gratidão.
Pároco de Vila das Aves, há já 39 anos e meio, o P. Fernando deixa marcas indeléveis na comunidade avense, como Homem e Sacerdote. De convicções fortes, a nível religioso e profano, sempre esteve de corpo e alma no que empreendia. Com grande capacidade de trabalho e possuidor de uma memória “invejável”, não era fácil acompanhá-lo. Deixa em muitos de nós a marca do crescimento na Fé, pela forma como celebra Eucaristias e ritos religiosos; o que também se mostrou uma faca de dois gumes, pois nem todos o aceitaram, passando a evitar as Eucaristias que celebrava, confundindo a “pessoa” com o “ministério” de que estava investido! Mas, muitos foram os que ele chamou e/ou se dispuseram a trabalhar em prol do Reino de Deus: catequistas, leitores, ministros da comunhão, conselheiros do Conselho Pastoral Paroquial e do Permanente; elementos dos Grupos Bíblicos. O seu legado de muito trabalho e canseiras estende-se a várias outras áreas: Lar Familiar da Tranquilidade; Patronato e Casa dos Pobres; Escola de Música; Jornadas Culturais e Organização de Viagens a Lugares Santos; Museu Eclesiástico, que visitei três vezes. Na última, impressionou-me a mudança operada, porque fruto de trabalho árduo do nosso pároco, já doente e em tempo de confinamento. A sua resiliência e capacidade de organização são aí bem evidentes! Como paroquiana, fui aprendendo a amá-lo como Pastor amigo, potenciador e encorajador das minhas vivências bíblicas, e isto mesmo lhe transmiti, por escrito, depois de lido o texto que escreveu como sendo o último: “Adeus e até Deus”.
Sebastião Lopes
Quero começar por dizer que me sinto um privilegiado ser daqueles que colaboraram com o Padre Fernando durante muitos anos na pastoral paroquial, em várias vertentes. Muitas vezes com ele concordei, outras nem por isso. Mas sempre o admirei.
O Padre Fernando é senhor de uma fé inabalável, uma fé fundamentada na sua paixão pelo estudo e conhecimento das sagradas escrituras. Todas as suas decisões se inspiram na interpretação e vivência da palavra de Deus. Só isto torna-o desde logo diferente. Veja-se o cortejo pascal, ex-libris de Vila das Aves, que mobiliza toda a pastoral paroquial: a apresentação de vários quadros bíblicos com tanta convicção acaba por atrair à rua toda a gente da terra e freguesias vizinhas. Por várias vezes a presença do nosso Arcebispo certificou a forma vivencial como a Páscoa se celebrava na Vila das Aves.
Depois da Sagrada Escritura, a cultura é outra área de sua predileção. Também aqui deixa trabalho feito na nossa terra, que também se tornou sua. O exemplo maior disto são as “Jornadas Culturais” de Vila das Aves, Figuras de destaque nacional foram conferentes em diversas ocasiões e locais da Vila das Aves, ficando tudo isso registado em livros que fez questão de editar, para que essas memórias ficassem para sempre.
O desporto também teve sempre lugar de destaque na sua vida, lembrando a máxima, “mente sã em corpo são”. Aliás a sua paixão pelo Aves incluiu a presidência da assembleia geral. De resto participou sempre de forma ativa nas alegrias e nas tristezas da vida do clube. No ciclismo, com alguns colegas “ases do pedal”, punha as suas forças à prova e diz quem sabe que não gostava de ficar para trás.
A música é outra das vertentes a que sempre dedicou muito carinho quer na Oficina de Música quer no Grupo Coral. É um defensor da música e da poesia ao serviço da liturgia, para assim louvar a Deus com mais nobreza.
Muito mais haveria para dizer sobre os anos que foi pároco na nossa vila, resta-me agradecer todo o seu empenho, saber e disponibilidade ao serviço da paróquia e de Vila das Aves. Cresci com ele na fé porque o seu exemplo é contagiante. Bem haja e que Deus o proteja e ajude.
Maria Henriqueta Alves
Nos inícios de 1981, conheci o novo Pároco, Senhor Padre Fernando de Azevedo Abreu aquando da sua posse na Vila das Aves e passados poucos meses fui contactada pelo mesmo, para colaborar com ele, na reorganização da pastoral paroquial. Vinha de toda uma educação e formação contínua de cariz católico e era a hora de compartilhar tudo o que recebera.
Refletir sobre uma década da minha vida em que tive a oportunidade de trabalhar na Paróquia é sentir que se tornara necessária uma renovação de toda a Comunidade Católica e ao mesmo tempo estar aberta ao pedido então formulado, num mundo em profunda transformação social, económica, política e religiosa.
Agora, quase três décadas depois do trabalho realizado, estou certa de que nada foi por acaso e que tudo o que foi solicitado, foi realizado com o espírito de missão e muita dedicação, vindo a tornar-se num período de maior participação e adesão de quase toda a comunidade da paroquial. Era essencial ouvir, dialogar, converter e agregar toda a comunidade religiosa à volta de uma vasta noção da vocação do Cristão. Por isso participei nos vários cargos – catequese, no serviço de Leitora, na preparação para o Crisma, no movimento do Ministros Extraordinários da Comunhão, no Conselho Pastoral Paroquial, no Conselho Permanente e muito mais tarde, no Centro Paroquial de Cense.
Luís Américo Fernandes
A entrada do pe. Fernando Abreu no início ano de 1981 corresponde a uma dupla viragem de mentalidades: a de um catolicismo ainda muito receoso dos novos ventos que sopravam do Vaticano II, acomodado a um catecismo e uma sacralidade tradicionalistas e de uma paroquialidade marcada pela supremacia do Sr. Abade e de colaboradores arreigados ainda ao antigo regime ou hesitantes quanto aos novos rumos da sociedade civil democrática instaurada com o 25 de Abril de 1974. Com efeito, a juventude e um ou outro arroubo de entusiasmo e carácter do novo pároco fizeram a diferença pela positiva e pela negativa e introduziram ruturas e dinâmicas na paroquialidade, primando por uma aposta na formação e na consciência de um laicado mais colaborante e participativo em órgãos colegiais na paróquia e nas estruturas diocesanas e eclesiais, na formação permanente na Fé, na escuta da Palavra e na ação transformadora na Comunidade.
Imbuído de uma atenção e acuidade ao que era a cultura local e a identidade avense, espevitou a consciência cívica de todos nós, com o apoio dos órgãos autárquicos e meios de comunicação sociais e associativos, fomentando as “Jornadas Culturais” que, durante o mês de outubro, ao longo de quase vinte edições, abordaram temas e problemas locais, eclesiais e nacionais, deixando toda uma literatura e uma pegada criativa de grande fecundidade que muito honra a paróquia. E mesmo quando esse “patronato” cultural esmoreceu com a passagem de testemunho ao mecenato da Câmara de Sto Tirso e ao Centro Cultural de Vila das Aves, que prolongou esse filão ainda por várias edições, não deixou o pároco de assumir até ao presente, uma peculiar edição de autor com motivos diversos da sua paroquialidade, atividades de lazer e associativas a que se dedicou.
Pessoalmente não posso deixar de realçar o apreço com que sempre distinguiu a formação musical na área da música litúrgica, e ou profana, através do Grupo Coral de Vila das Aves a que se associou na primeira hora como coralista e, por inerência, Presidente da sua Assembleia Geral até hoje, destacando o entusiasmo que sempre lhe mereceu a sua Escola de Música que tantos jovens formou para o serviço na Comunidade enriquecendo-a e distinguindo-a com iniciativas culturais inesquecíveis. No preciso momento de nos despedirmos do seu múnus, diga-se em abono do futuro que a sua paroquialidade também teve um apogeu a partir do qual o fulgor da Comunidade se veio a perder num ensimesmamento de ideias, processos e métodos de atuação que tinham como contraponto uma maioria sociológica católica que obviamente nunca mais seria nem desejável nem possível, mas se veio tornando minimalista e apagada à semelhança desta crise que nos obrigou a confinar e da qual, como sinal dos tempos, tem de começar a sair com novo frémito, impulsionada por nova dinâmica eclesial que um novo pároco não deixará de trazer-lhe e sob o cajado do mesmíssimo Pastor, Jesus Cristo Senhor e fonte de rejuvenescimento no contexto de uma sociedade livre, democrática e plural já consolidada.
Rita Herdeiro
Sobre o padre Fernando com quem tive e tenho o prazer de conviver saliento três pontos. Foi um empreendedor. Deixa-nos um legado valiosíssimo (Lar Familiar da Tranquilidade, Centro de Lazer António Martins Ribeiro, Patronato e Casa dos Pobres).
Sempre foi um amigo, aliado e defensor dos jovens, em todas as vertentes da Igreja. Foi um dedicado protetor dos idosos. Sempre zeloso da sua dignidade, principalmente nas situações de doença e sofrimento.
Alexandre Martins – O legado como instrumento do futuro
Correndo o risco de pecar por omissão, penso que o legado maior que nos é deixado pelo Pe. Fernando é o de uma pastoral que no laicado tem o seu corpo e na Palavra a sua força motriz. A revitalização da pastoral que decorreu do Concílio Vaticano II (1962-1965) teve o seu maior impacto em Portugal no pós-25 de Abril de 1974, chegando a esta paróquia em força nos anos 80, como provam as várias obras, instituições, grupos, movimentos e órgãos paroquiais que germinam nessa altura pela mão do Pe. Fernando, sempre com o seu jeito e forma de agir peculiar. Para mim, que despertei para a vida paroquial no ambiente jubilar do ano 2000, a partir da catequese e do serviço do altar, a paróquia sempre foi o lugar do serviço e da alegria do compromisso, da escuta atenta da Palavra e da partilha dos dons de cada um. Hoje, mais do que o normal e legítimo panegírico à figura do nosso pastor, importa reflectir sobre os frutos colhidos, insistindo que o que se colhe resulta de um labor pastoralmente exigente, vivencialmente fecundo e liturgicamente orante, sempre com a Palavra de Deus como centro de onde parte e aonde chega toda a nossa actividade. O cuidado com os outros, sobretudo com os mais velhos que tanto gostava de visitar, com a educação cristã das crianças, a preparação cuidada dos sacramentos e uma visão (por vezes “profética”) da relação da Igreja com o mundo fazem destes anos de paroquialidade um instrumento imprescindível para a construção da identidade cristã da nossa comunidade.
O legado do Pe. Fernando é também histórico para a Igreja e para a sociedade civil pelo trabalho em prol da cultura, tantas vezes numa simbiose entre o religioso e o profano, como testemunham as Jornadas Culturais de Vila das Aves, marco indelével na pastoral paroquial e na vida da Vila das Aves e do concelho de Santo Tirso, e o trabalho social das instituições do Lar e do Patronato; permitam-me uma especial referência à Oficina de Música do Grupo Coral de Vila das Aves, então Escola de Música, que foi durante muitos anos uma referência no ensino de música e no cultivo do gosto pela mesma; muitos foram os alunos que dali saíram para rumarem às melhores escolas de música e de lá para orquestras e escolas de todo o mundo. Hoje, a Oficina continua com o mesmo sorriso humilde perante as dificuldades e acolhe os que querem estudar música, cada vez menos mais ainda assim dignos do nosso esforço.
Creio que todo o legado do Pe. Fernando é também o legado de muitos que já partiram e que deram de si à nossa comunidade em vários âmbitos. Esta foi a resposta ao desafio lançado em 81, a vontade de ter leigos “virtuosos, inteligentes, resolutos e apostólicos” (Pio X), pelo que a existência dos “Memoriais da Fé” no adro da Igreja matriz não é um mero capricho. Hoje o leigo que colabore na paróquia sabe que as adversidades são mais do que muitas, pelo que a nossa fé «levada em vasos de barro» tem de ser resiliente e capaz de convencer outros de que vale a pena uma vivência comunitária da fé. Os desafios são maiores para os jovens, talvez até um pouco esquecidos e relegados para um segundo plano no meio do funcionamento sistémico de uma paróquia, o que duplica a necessidade de com eles trabalhar, caso contrário em menos de duas ou três décadas seremos uma paróquia “gerontocrática”, composta, na sua maioria, por aqueles desesperançados que preferem afirmar a pés juntos que os jovens estão todos longe da Igreja porque querem e não porque pouco ou nada se faz para que o contrário aconteça.
É certo que um olhar atento e eclesialmente responsável, sob qualquer prisma, nos fará notar as dificuldades que a sociedade hodierna impôs à pastoral paroquial nos últimos vinte anos e os consequentes desafios para a mesma; mas como a Igreja é, na expressão popularizada pelo teólogo Karl Barth, a Semper Reformanda, a seu tempo todo este legado terá de ser lido à luz das novas exigências, pois uma mudança no actual contexto implicará sempre uma estratégia assumida com desassombro, para a continuidade do projecto comunitário de ser Igreja. Isto exigirá de todos os paroquianos que estejam dispostos a ser semeadores da esperança, a desinstalarem-se e a deixarem os sofás e a mesa do café que descansam as nossas consciências no indiferentismo instalado e proporcionador da existência de “cristãos anónimos”, fenómeno cada vez mais comum nas comunidades urbanas e suburbanas.
Para o futuro e o bom aproveitamento desde legado penso que teremos de reunir sinergias para combater o individualismo e sermos, de facto, uma comunidade que faz pontes e não que edifica muros em torno de si ou em torno dos seus interesses.
“Os fiéis são chamados a exercer o apostolado individual nas diversas condições da sua vida. Lembrem-se, contudo, que o homem é, por natureza, social, e que aprouve ao Senhor unir um Povo de Deus (cfr. 1 Ped. 2, 5-10) e num corpo (cfr. 1 Cor. 12,12) os que crêem em Cristo. Portanto, o apostolado em associação responde com fidelidade à exigência humana e cristã dos fiéis e é, ao mesmo tempo, sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo que disse: «Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles (Mt. 18,20).” [Apostolicam Auctuositatem, 18]