[Crónica] Memórias da fauna piscícola de ambos os Aves (I)

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Creio que o interesse pela natureza é algo inato comum à maior parte de todos nós. A compreensão das plantas e dos bichos inicia-se logo na infância, quando descobrimos o mundo. Recordo que quando era pequeno, tal como aos meus amigos, os animais aquáticos eram dos que mais nos fascinavam. Nas férias grandes, em dias de estio, apanhar diferentes tritões e rãs, e respetivas larvas, em frascos de Tofina, era algo que fazíamos, frequentemente, para, depois, em contraluz solar, admirar tanto as colorações como a delicadeza da pele destes anfíbios. Além disso, ainda víamos outros pormenores mais curiosos, como por exemplo, as guelras das larvas, ampliados pelas curvaturas e diferentes espessuras do vidro dos frascos.  Porém, a esse tempo, estávamos impedidos de ver outros seres aquáticos de maior porte, porque, devido à poluição, não existiam nas linhas de água de maior dimensão. Como todos testemunhamos, grande parte dos ribeiros de maior caudal, assim como os rios Ave e Vizela, eram fétidos e, a sua fauna, à época (anos 70 e 80), estava, literalmente, morta, devido à enorme poluição causada pela indústria do Vale do Ave. Os peixes, os mamíferos e as aves que hoje, de forma gradual, (re)começamos a (re)ver, eram quase inexistentes. No entanto, entenda-se que este momento negro do Ave foi o culminar de um processo de extirpação que dura há muitos séculos.

Ao analisar a documentação do passado, constatamos que, por cá, tratar mal as linhas de água, é algo que não é de agora. Se hoje as sujamos e nelas edificamos barreiras gigantescas, em tempos mais remotos, as populações já subjugavam os cursos hidrográficos a extrações sobredimensionadas, a processos de pescaria ilegais e à construção excessiva de açudes, conforme alegam muitos dos subescritores de determinados documentos que citaremos. Por outro lado, anote-se que o Ave não é um rio pequeno. Contudo, é demasiado exíguo para a quantidade de gente que vive nas margens da sua bacia hidrográfica. Atualmente, são 700.000 pessoas, em catorze concelhos dos distritos de Braga e Porto, distribuídos por uma área que contém, em média, quase 300 habitantes por quilómetro quadrado. 

Pelo que compreendemos, sobretudo das Memórias Paroquiais, no século XVIII, os escalos, bogas, barbos e trutas, eram as espécies mais comuns e que nele viviam permanentemente, em todo o curso de água doce, desde a sua foz, em Vila do Conde e Azurara, até aos ermos montanhosos da Serra da Cabreira e de Morgaír.  Além disso, desde a Idade Média que, no Ave, se encontra inúmera documentação relativa à pesca das espécies que possuíam elevado interesse gastronómico, nomeadamente, a lampreia, o sável e o salmão e, ainda, à truta marisca e à enguia, espécies fluviomarítimas migratórias. Destes últimos cinco peixes, hoje, só a enguia se mantém. As outras extinguiram-se devido à poluição e, sobretudo, à construção de inúmeras barreiras de mini-hídricas que, no século XX, impediram, de forma definitiva, a saga migratória destes animais. Conforme é de sabido, à exceção da enguia, estas espécies, depois de viverem a maior parte do seu ciclo de vida no mar, atingida a maturidade reprodutiva, procuram as partes pouco profundas dos rios onde nasceram, de águas frias, oxigenadas, com fundos arenosos e seixosos, para se reproduzir e morrer.  Já a enguia também migra, mas no sentido inverso: vive nos rios e, atingida a maturidade, vai-se reproduzir ao Mar dos Sargaços, ao largo do continente norte-americano. Depois, os juvenis, regressam aos rios, subindo-os de forma admirável, ultrapassando, até por terra, inúmeras barreiras, inclusive as maiores. Pelo que se percebe da documentação, a pesca no Ave sempre foi livre, à exceção dos engenhos de pesca instalados nos açudes e das pesqueiras de lampreias e sáveis. Estas últimas surgem já nas Inquirições Afonsinas de 1220 e 1228, como estruturas coutadas, propriedade da nobreza e dos mosteiros, satisfazendo, em especial, as dietas quaresmais, já que, estes peixes, subiam o rio entre fevereiro e maio, o que coincide com o período que precede a Páscoa.

Imagem retirada de: Poll, M.  – “Poissons marins. Faune de Belgique”. Le Patrimoine du Musée Royal d’Histoire Naturelle de Belgique: Bruxelas, 1947. P. 452.

Refira-se que, por sua vez, o Vizela nunca acolheu estas espécies migratórias e, consequentemente, nunca possuiu este tipo de pesqueiras. Entendemos que tal se deve à elevada altura do desnível da queda-d’água que o mesmo possui a poucos metros da sua desembocadura no Ave, no preciso local onde, em 1908, se edificou a Central Elétrica de Caniços/São Pedro, localizada em Entre Ambos os Rios, Vila das Aves e o lugar da Honra, em Rebordões. Mesmo antes da construção deste aproveitamento hidroenergético, as fragas da sua cascata foram uma barreira natural que impediu estas espécies de subir o afluente, inclusive o salmão, um peixe capaz de saltar alturas consideráveis. Note-se que, como já referimos, só a enguia era capaz superar esta cachoeira, devido à sua capacidade única de transpor obstáculos, subindo, quando necessário, pelas margens e, de facto, a espécie surge referenciada como uma das que habitavam o rio Vizela nas Memórias Paroquiais (1758) da freguesia de Gémeos, Guimarães[1].


[1]  ANTT, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PT-TT-MPRQ-17-31_m0093a, “Memórias Paroquiais”, vol. 17, nº 31, p. 159 a 164.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

twenty − four =