[Crónica] IRC mínimo comum. Um pouco de civilidade no caos global?

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

A hipótese de um IRC mínimo, acordado no G7 e secundada pela administração Biden, é uma grande notícia. Ficam dúvidas quanto à suficiência da dose, mas o sentido da medida é o correto.

Durante anos tem sido frequente ouvirmos panegíricos à redução do IRC como a solução para todos os males económicos. Não raras vezes o modelo irlandês é proclamado como ideal a seguir. Dos muitos equívocos em relação ao último ressalto apenas um, porventura o principal, referindo-me às multinacionais: este não constitui um modelo de desenvolvimento económico, enquanto produção de valor, mas sim um modelo de apropriação do valor gerado. Subjaz ao modelo dois tipos de desproporcionalidade. Por um lado, entre o local onde o valor é produzido e onde os lucros são registados – desproporcionalidade geográfica. Em segundo, entre quem contribui para a produção de valor, sejam os trabalhadores, sejam os contribuintes por via do investimento (como bem refere Mariana Mazzucato no livro Estado empreendedor) e quem dele beneficia – desproporcionalidade contribuidor/beneficiário.

Mesmo que sejamos todos desprovidos de sentido de justiça, não adianta. O maquiavelismo acabará, mais tarde ou mais cedo, por esbarrar com a realidade. Se todos os Estado concorrerem entre si para oferecem a fiscalidade mais atrativa para as multinacionais, chegaremos a um ponto em que estas não serão simplesmente taxadas, e ninguém, a não ser os proprietários, beneficiarão por as “acolher” no seu espaço. A sobrevivência do “milagre” irlandês, depende da existência de poucas irlandas. Caso contrário não haverá nenhuma (é este receio, aliás, que motiva as potências mundiais a defender um IRC mínimo comum. Não se tornaram socialistas de repente).

Mesmo que sejamos todos desprovidos de sentido de justiça, não adianta. O maquiavelismo acabará, mais tarde ou mais cedo, por esbarrar com a realidade.

Hugo Rajão

Dito isto, é preciso de uma vez por todas desmistificar os termos “impostos”, “carga fiscal” e outros afins. Numa crónica parafraseei Gramsci, acerca da tentativa das classes dominantes em transformar interesses de classe em desígnios de todos. O mesmo se aplica aos termos mencionados. Os impostos são muitas vezes apresentados no espaço público, em especial pela Iniciativa Liberal, como uma massa homogénea, uniforme, que afeta todos, quer do lado da contribuição, quer dos benefícios (que a IL oculta), de igual forma. Logo, todos ganhariam com uma redução dos mesmos, seja de que natureza for. Nomeadamente com a implementação de uma taxa plana.

Não é simplesmente verdade. É fundamental explicar às pessoas nas quais recaem os maiores esforços fiscais, aqueles que não têm forma de fugir para as irlandas e holandas da vida, que a maneira que as desonerar passa por transferir parte do ônus para os que estão no topo. Alívios fiscais cegos, só revertem para estes últimos, aumentando a conta dos primeiros.

Num mundo globalizado, estabelecer um mínimo comum é, portanto, fulcral. Ficamos a aguardar novos desenvolvimentos.

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